Felicidade: morenas e mulatas voltaram!

 

          Os homens ainda preferem as louras? Em 1953, o cineasta Howard Hawks jurava que sim — mas também tendo toda a estrutura da 20th Century Fox e uma blonde top de linha como Marilyn Monroe à disposição de suas câmeras seria, por óbvio, caturrice deixar de apostar nessa preferência. Como a competente indústria de entretenimento americana nunca brigou contra o óbvio, o filme “Os homens preferem as louras” consolidou na década de 50 a versão que, desde então, alimenta fantasias, sonhos e desejos dos marmanjos em quase todo o mundo. Não poderia ser diferente no carnaval do Rio, essa mixórdia que junta com um aparentemente improvável equilíbrio e uma inegável graça o sambista desdentado dos morros, o gênio de músicos que saem do anonimato para criar belas páginas da MPB, criadores de sonhos como os carnavalescos, desconhecidos e belos foliões, musas e mitos da cultura popular e, claro, elas, as — pelo menos até aqui — onipresentes beldades de pouca roupa e muita água oxigenada nos cabelos. Também na folia carioca, os homens ainda preferem as louras?
          Há controvérsias. Desde o ano passado, e neste 2005 com indicações ainda mais acentuadas, as boazudas da vez parecem ter mudado o tom dos cabelos — e, principalmente, da pele. Para felicidade geral, e do mestre Lan em particular, mulatas e morenas, que há um bom punhado de anos vinham gramando uma injustificável coadjuvação na avenida, pelo menos no grau de importância que lhes reserva a indústria da informação, dão mostras de que estão recuperando seu real lugar de destaque nas escolas de samba. Pode não ser uma tendência que se consolide nos próximos anos, e mesmo o fato de as louras aparentemente estarem cedendo espaço para outros matizes de pigmentação não significa que o carnaval vá ficar melhor ou pior. Mas, vamos reconhecer, confere um pouco mais de autenticidade a uma festa que tem grande identificação com a cultura negra e restabelece uma bem-vinda democracia racial na avenida.
          O carnaval mexe com paixões, e enquanto a paixão está na concentração a unanimidade está deixando a dispersão. Em defesa de posições aparentemente antagônicas identificam-se atualmente duas linhas básicas entre os apaixonados pelo carnaval — e aqui estamos falando especificamente do que se passa no Sambódromo desde a entrada da comissão de frente da primeira escola a desfilar até a retirada da última linha de foliões da derradeira agremiação a se exibir.
          Há aqueles que defendem o desfile puro-sangue, o carnaval feito basicamente da tradição. Em defesa dessa posição, registre-se que, não fossem os carnavalescos de — o termo se justifica — antanho, não haveria carnaval, a cultura brasileira não teria incorporado a seu acervo a maior festa popular do mundo e o carnaval não teria criado as raízes que hoje o fazem se confundir com a História do país. Por outro lado, existem os que vêem no Sambódromo apenas uma pista para o contínuo desfilar de beldades sem qualquer identificação com as comunidades. O argumento a favor: o carnaval mudou, e é preciso que ele se adapte aos novos tempos.
          Entre uma posição e outra, a prudência manda que se fique tucanamente eqüidistante dos radicalismos. Mas, ainda que se tome partido, de uma coisa não se pode fugir, qualquer que seja o lado escolhido do muro: uma certa onda tradicionalista avança sobre barracões, quadras e desfiles. As manifestações mais evidentes dessa tendência foram, ano passado, a presença da veterana sambista Dodô à frente da bateria da Portela e o maravilhoso desfile no qual o Império Serrano reviveu o antológico enredo montado em cima do não menos antológico samba “Aquarela brasileira”, de Silas de Oliveira. Não chega a ser uma tsunami, mas este ano outras evidências mostram que a onda na qual surfam os valores mais identificados com o tradicionalismo ainda não quebrou na praia.
          Do ponto de vista da, digamos, pigmentação, essa tendência se manifesta em detalhes como, por exemplo, o fato de as louras terem sido expurgadas das baterias das grandes escolas, em detrimento de mulatas ou morenas. Há, evidentemente, resistências — e é sintomático que uma das poucas escolas a manter uma loura como rainha de bateria, a Acadêmicos da Rocinha com Adriane Galisteu, tenha até publicado anúncios nos jornais informando que estava remando contra a maré.
          São, enfim, considerações. Com ou sem louras, mulatas e morenas, com tradição ou sem vínculos maiores com o passado, o carnaval hoje não é, e jamais voltará a ser, como antigamente. Mas é saudável que traga de volta para a avenida valores d’antanho que ajudaram a fazer dos desfiles a festa maior do povo brasileiro.
          É saudável que o legado dos Silas de Oliveira seja preservado, emprestando à modernidade das Superescolas de Samba S.A. aquele tom que não nos faça esquecer que, sim, a beleza é fundamental, desde que ela não seja a coveira da arte. E é saudável, sobretudo, que a ditadura da água oxigenada esteja com os dias contados. Que venham de volta as nossas mulatas, guerrilheiras da democracia racial, porque delas também é o reino da folia.

Cesar Tartaglia é jornalista
(Publicado originalmente na seção Opinião do Jornal O Globo em 30 de janeiro de 2005)

 

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