A melhor tradução do Carnaval

 

            Ai de quem comparar Milton Cunha a Madame Satã! Nenhum dos dois gostaria. Milton não usa navalha e nem luta capoeira, óbvio. 'Atracar-se com homem', no seu caso, é sempre sinônimo de prazer - e nunca de briga. Mas há, entre eles, pelo menos dois pontos em comum: como o lendário malandro da Lapa, Milton também é gay assumido e sujeito homem na hora de enfrentar desafios e tomar decisões. Foi assim, por exemplo, em 1999, quando o barracão da União da Ilha pegou fogo e ele reconstruiu o carnaval da escola em 36 dias, mantendo-se no Grupo Especial. Ou quando, em 1997, pediu demissão da poderosa Beija-Flor por achar que a escola vitaminada estava ofuscando seu brilho. Mas se há um momento em que este paraense decidido fica hesitante é ao preencher ficha de cadastro pessoal. Em saguão de hotel, por exemplo. É quando surge aquela lacuna incômoda: o espaço em branco em que precisa informar sua profissão. 'Cada vez eu escrevo uma coisa diferente', confessa, rindo espalhafatoso.
            Formado em Psicologia pela Universidade Federal do Pará, Milton Cunha está fazendo pós-graduação em Moda, já teve confecção própria - a 90° -, inicia uma carreira de apresentador de TV e acaba de estrear como figurinista de teatro, no espetáculo 'Obrigado, Cartola', em cartaz no Rio. Comemora ainda um recente convite para voltar a trabalhar como ator. 'Sou sindicalizado e tudo', gaba-se. Nas horas vagas, digamos assim, encarna o carnavalesco da São Clemente, escola que abre o desfile do Rio este ano. E faz isso de forma nada discreta. Bem ao seu estilo Satã.

'Comparo Nassau a Lula'

            Será impossível a São Clemente passar em branco na Sapucaí. Ok, ela vai passar em preto e amarelo, as cores do pavilhão. Mas é pelo enredo curioso e pelas críticas sociais que Milton Cunha deve atrair o foco na passarela e se consagrar este ano como o novo grande nome do carnaval carioca. Dificilmente ganhará o título de campeão, pois jurados, infelizmente, não costumam se entusiasmar com escolas pequenas. Mas a repercussão do seu trabalho já está garantida. Dois meses antes do desfile, as alegorias de Milton começaram a causar alvoroço. Até o presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, veio de Brasília ao barracão da escola, em São Cristóvão - tudo para convencer Milton a não levar para a pista um boneco do Tio Sam, de calças arriadas, defecando sobre o Congresso Nacional.
            Em outra plenária, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, os vereadores aprovaram novo veto a uma criação do carnavalesco: uma imagem que representaria os veadinhos de Pelotas. Espirituoso, Milton anunciou a mudança de nome da ala: 'Não dou pelota para veadinhos'. Apesar das pressões, as duas alegorias estarão na avenida, mas devidamente amordaçadas, como crítica à censura. Junto a elas, surge agora a representação de um punho cerrado, com mangas de camisa e terno escuro. 'É a mão do deputado João Paulo, que censurou meu desfile', avisa Milton, ferino.
            Isso tudo é pinto perto do que vem por aí: o Sambódromo vai ver alas inteiras carregando reproduções de fezes nos ombros (alusão à poluição de praias e rios) e componentes com pinicos na cabeça (referência à expressão 'meu ouvido não é pinico'). 'Será um carnaval Casseta & Planeta. Provocando o riso, quero fazer o público pensar, retomando a crítica comum nas antigas marchinhas de carnaval', diz o carnavalesco. Está prevista ainda a passagem da Egüinha Pocotó, da reprodução de um presídio de segurança máxima com celulares e laptops e uma boneca seminua sentada numa garrafa. Totalmente sentada - se é que isso ajuda na descrição da cena.
'Cocô e lixo estão muito mais perto da realidade brasileira do que plumas e paetês', diz Milton, arregalando os olhos verde-amarelados e gesticulando muito. A poucos dias do desfile, ele em nada se parece com aquela imagem clássica que fazemos de carnavalescos na reta final, correndo contra o tempo para finalizar os detalhes. 'Não entendo essa gente que diz que passa os últimos dias virando noite no barracão e dando chilique na escola', comenta. 'Todos os carnavalescos recebem o dinheiro em agosto!', estranha. 'Eu termino tudo bem antes e passo os últimos 15 dias só caindo na esbórnia. Vou a feijoadas, festas, ensaios... Eu me acabo.'
            A véspera desta entrevista foi exatamente assim: muito samba na quadra da Estácio de Sá até altas horas. Só às três da tarde de quarta-feira, dia 18, Milton chega ao barracão: bermuda estampada, camiseta sem manga e a cara bolachuda levemente amassada. Brincos, pulseira e colar abóbora são inseparáveis. Sereno, orienta seus artesãos nos arremates. Um deles avisa que está chegando ao fim um material com que cobriria alguns carros. 'Usa tudo num só e bola pra frente', ensina, confortavelmente sentado sobre uma cobra (que, é bom explicar, será parte da fantasia da comissão de frente). Uma equipe da agência de notícias Reuters faz plantão na porta e quer entrevistá-lo. O cronista Zuenir Ventura também marcou uma visita para o fim da tarde, pois um passarinho lhe contou que o enredo da São Clemente - 'Boi Voador sobre o Recife, cordel da galhofa nacional' - vai dar o que falar. Mas de que diabos, afinal, fala esse enredo?
            A gênese de tudo é a história de Maurício de Nassau, conde holandês que levou Recife, em Pernambuco, à falência no século XVII. Para sanear as contas, o governante anunciou a apresentação de um Boi Voador àqueles que pagassem pedágio numa ponte recém-construída. 'Inaugurou-se ali no país o costume de político mentir para o povo', diz o carnavalesco, que, a partir dessa idéia, apresenta uma série de problemas sociais nunca resolvidos - como tráfico de drogas e saneamento - misturados à capacidade do brasileiro de transformar tudo em galhofa.
'O político perdeu o bom humor e hoje mente sobre coisas barra pesada, comprometendo a fome e a miséria. O brasileiro, não. Continua levando tudo na esportiva', analisa. 'Por isso, o carnaval é o maior exemplo de competência nacional.' A folia estará representada no último carro alegórico, com o circo. 'É metalinguagem', refina. As tais cobras da comissão de frente vão entrar fumando, num alerta: o bicho vai pegar! O segundo carro compara a prostituição na corte holandesa com o atualíssimo tema das garotas de programa em Copacabana. 'Trago tudo para os dias atuais, mostrando que quase nada mudou. No fundo, comparo Nassau a Lula', entrega.

'Queria desfilar como Branca de Neve'

            Milton Cunha estreou como carnavalesco em 1994, totalmente por acaso, e, de cara, numa grande escola, a Beija-Flor. Seis anos antes, em 1988, ainda trabalhava como produtor de concursos de mulheres na casa de espetáculos Scala, no Leblon, quando conheceu o patrono da agremiação, Anísio Abrahão David. 'Ele se apaixonou por uma candidata, a Fabíola, que, por coincidência, dividia apartamento comigo. E eles começaram a namorar', lembra Milton, que não tem motivos para esconder o romance. 'Hoje, ela é mãe de dois filhos do Anísio e, este ano, eles finalmente se casaram de papel e tudo', conta, com vaidade de cupido.
            Em 1993, já amigo do casal, foi convidado às pressas para fazer, em dois dias, 70 fantasias para a ala das passistas. E resolveu bem a encrenca. No ano seguinte, incentivado pela turma, concorreu ao posto de carnavalesco, disputando a vaga com outros nove nomes, como Max Lopes e Miguel Falabella. Venceu e levou para a avenida um enredo rebuscado, sobre Margareth Mee. 'Um mês depois da minha contratação, o Anísio foi preso e acabaria ficando três anos na cadeia', conta. 'Passei esse período indo todo sábado à penitenciária para mostrar meus desenhos a ele', lembra, espantado com a própria façanha. Hoje, relembrando tudo isso, sabe que a ausência do patrono favoreceu seu espírito ousado. 'Eu tinha muita liberdade, podia brincar de fazer carnaval.' Em 1998, por exemplo, ao homenagear Bidu Sayão, inovou ao levar um naipe de violinos para a avenida.
            'Desde os 5 anos de idade, eu ouço as pessoas dizerem que sou maluco', diverte-se o carnavalesco. Nascido em Soure, capital da Ilha de Marajó, Milton foi menino estudioso. 'Eu me interessava por Godard, ia a cineclube e fazia teatro', descreve. Conta que descobriu seus desejos homossexuais e também os sonhos de grandeza ainda criança. 'Eu não tinha como esconder nada, pois eu era aquilo. E Marajó parecia pequeno demais.' Mal acabou a faculdade de Psicologia, cumprindo desejo do pai, Milton embarcou, em 1982, para o Rio - com maleta, cara e coragem.
            Sua história de migração em busca do sonho é muito parecida com a do maranhense Joãosinho Trinta, ao mesmo tempo ídolo e fã. 'Milton Cunha é muito criativo e vai longe', elogia o mestre dos carnavalescos. Se Joãosinho conseguiu seu primeiro emprego no Teatro Municipal, o jovem paraense, então com 19 anos, se juntou a um grupo do Teatro Cacilda Becker, no Largo do Machado. E foi dali que acabou sendo pinçado pelo empresário da noite Chico Recarey, dono do Scala. 'Com o espetáculo sobre Cartola estou voltando ao teatro após 20 anos de separação', suspira.
            Na TV também tem fuçado seu espaço. É um dos debatedores do programa 'Primeiro Time' e também do 'Sem Censura', ambos exibidos pela TVE. 'Milton Cunha é um grande achado', enaltece o diretor da emissora, Fernando Barboza Lima. Milton ainda dá pitacos no 'Comentário Geral', de Miguel Paiva e, na TV Estácio (canal universitário), apresenta o 'Ilustres Anônimos', em que sai às ruas entrevistando figuras desconhecidas. Para o carnaval, já assinou dois contratos: no sábado, comenta o desfile do Grupo de Acesso pela CNT; e na semana seguinte, participa da transmissão que a Bandeirantes faz do Desfile das Campeãs. 'Eu queria também desfilar como Branca de Neve na Acadêmicos da Rocinha, mas a CNT não deixou', lamenta, cheio de fôlego.
            Aos 41 anos, essa espécie de Jorge Fernando do carnaval carioca mantém múltiplas atividades, mas, ao menos no discurso, continua com a idéia fixa de ser ator. 'É meu maior sonho.' Em 2000, depois do incêndio no barracão da União da Ilha, recolheu-se por um ano numa casa em Ilha de Guaratiba, com vista para a Restinga da Marambaia, onde assistia aos exercícios militares. 'Foi neste período que descobri minha maturidade', conta, lembrando que o ano sabático também o levou aos 100 quilos de hoje. 'A cada explosão na Restinga, eu me compreendia mais. Por isso, minha biografia vai se chamar 'Tiros na Marambaia', anuncia.
            É isso mesmo, leitor: Milton Cunha também tem planos de escrever um livro. Nas próximas horas, vai dar seu espetáculo no Sambódromo. Não com aquele ar preocupado e tenso de alguns carnavalescos, que atravessam a pista gritando e gesticulando com as alas. Uma das marcas de Milton é justamente desfilar à frente de sua escola, sambando mais do que qualquer componente e disputando atenção com a rainha da bateria. Se o enredo vai ou não ser compreendido por platéia e público, só o domingo dirá. Milton Cunha mostra este ano na avenida sua maturidade como carnavalesco. A maturidade daquele menino 'maluco' que saiu da ilha de Marajó."

Claudio Henrique
(Publicado originalmente no site No Mínimo em 21 de fevereiro de 2004)

 

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