Nem melhor, nem pior: fundamental

 

           Para mim, os desfiles das Escolas de Samba começaram efetivamente em 1960. Afinal, foi o primeiro ano que assisti em plena Rio Branco da sacada do “Jornal do Brasil”. É claro que houve um motivo que me levou a abandonar as delícias serranas, mais especificamente Petrópolis, e seus deliciosos bailes (já saindo dos infanto-juvenis verspertinos, para os juvenis-adultos noturnos). Em 1959, lá pelas tantas, nem me lembro direito da hora (afinal, era uma esculhambação só), vi pela televisão (em preto e branco e entre disparos de horizontais e verticais o que muito acontecia naquele tempo), algo que chamou minha atenção. Era exatamente a passagem do Salgueiro (cujo nome nem cheguei a registrar, humildemente confesso), com o enredo “Viagem Histórica e Pitoresca pelo Brasil”, comumente (mas erradamente) conhecido como “Exaltação a Debret”. Em meio ao caos da transmissão, senti que era algo belo e diferente, algo que tinha que ser visto ao vivo e a cores.
           O desfile do Salgueiro em 1959, organizado por Dirceu e Marie Louise Nery, está lá longe na minha memória. Ele, digamos, foi o clique, aquele que deu, sem querer e sem eu perceber, o pontapé inicial para a minha paixão pelas escolas de samba. Havia um diferencial que mostrava a “qualidade” cultural daquela manifestação, e da qual, na pose de pomposa e precoce elite, não tomava conhecimento e pela qual, pedantemente (sem poder), olhava de cima e com desprezo. Eu era bem garoto mas me encantei com aquilo. As lembranças são vagas mas, ainda assim, resistem à erosão do tempo.
           A paixão, porém, como disse logo no início, veio no ano seguinte. E veio de forma avassaladora e especificamente em função da apresentação de uma escola. A Avenida Rio Branco era um caos de pessoas que literalmente a tomavam de lado a lado, de ponta à ponta, praticamente tirando a possibilidade de haver qualquer desfile. Este que estava marcado, vamos dizer para as oito (realmente não me lembro com exatidão desse detalhe), às dez da noite ainda nem tinha começado. Confesso que, cansado e me maldizendo por ter descido de Petrópolis, perdido a chance (domingo era o dia do Quitandinha), de brincar um pouco, ou então, ficar em casa jogando king e o’ hell (dois jogos fascinantes de baralho), já estava pensando em me ir embora (para o que, obviamente, tinha que ter a concordância dos que estavam comigo e assumido a responsabilidade de me levarem junto aos velhos). Nada acontecia, só muita confusão, brigas, discussões, o palanque dos jurados, praticamente à minha frente, esperando e olhando, impotente, todo o imbroglio.
           Quem deveria começar o desfile era a campeã dos anos anteriores (por três anos seguidos), a Portela, a azul-e-branco de Madureira, sob o comando do todo-poderoso Natal (isso tudo estava sabendo na hora pois tudo era novidade para mim). Mas ela se recusava enquanto tudo não ficasse direito. Parecia que isso nunca ia acontecer e que aquela coisa levemente mágica que havia intuído sem cores no ano anterior, infelizmente não ia acontecer. Mas, de repente, não mais do que de repente, como disse Vinicius, para espanto geral, foi anunciado que uma outra escola tinha decidido assumir o risco e que, finalmente, o desfile ia começar. E, obviamente não por coincidência (nessas horas, não as há), o nome desta escola era Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro (quem sabe isso tudo é delírio meu, para dar maior dramaticidade ao que via, mas não, tenho quase certeza que não), a mesma que, inspirada em Debret havia me encantado levemente no ano anterior ao fazer sua viagem pelo Brasil a dentro.
           E aí tudo começou. Enfrentando polícia, arremedos de cordões de isolamento, invasões de público, surgiu aquele mar vermelho e branco e um maravilhoso coro de vozes entoando “Meu Maracatu é da Coroa Imperial/ É de Pernambuco/ele é da Corte Real”, o lindo samba-enredo escrito pelos geniais Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho para o tema “Quilombo dos Palmares”, desenvolvido por Fernando Pamplona. A paixão bateu ali, tanto pela coragem da escola, quanto pela extraordinária beleza da mesma mergulhando nas nossas raízes africanas e cantando lindamente a liberdade. Foi um arrepio só, inesquecível, para sempre guardado em espaço especialíssimo em meu coração e em minha mente. E quando entrou então o carro dos escravos trazendo a turma da Mercedes Batista, em furiosa coreografia, eu já era um súdito dileto e eterno do paraíso salgueirense.
           Meu coração que, até então, era preto e verde em listras verticais (pela minha paixão pelo Stud Seabra, é o meu lado de turfista, as cores que brilhavam tão intensamente com craques como Tirolesa, Escorial etc…), e preto e branco em listras verticais, mas com uma estrela solitária nelas brilhando (o meu Botafogo, de Nilton Santos, Garrincha, João Saldanha, o da histórica goleada de 6 a 2 sobre o Fluminense, que lhe deu o campeonato de 1957), e olha que toda minha família era (e é, porque minha filha e meu filho, o são alucinadamente, em uma das “derrotas” de minha vida – é claro que estou brincando), rubro-negra, apaixonada por Babá, Esquerdinha, Dida, Joel and others, passou a ser também visceralmente vermelho e branco.
           Essa paixão, felizmente, durante muitos anos, sobretudo até 1975, viveu momentos absolutamente maravilhosos, incomparáveis, através de espetáculos dignos de serem assinados por um Strehler, por exemplo. A ópera de rua, em todo o seu esplendor, foi criada pelo Salgueiro (e se hoje o espetáculo tem toda essa dimensão, sem ele isso nunca teria acontecido, pois, hoje, sem medo de errar, todas as escolas, grandes e pequenas, acertando ou errando, são filhotes do Salgueiro, até mais do que o próprio hélas!). Os prazeres foram enormes. Claro que mais com as vitórias. Mas mesmo algumas derrotas injustas, injustíssimas (como a de 1964 para a Portela, esta mostrando “O Segundo Casamento de Dom Pedro I”, a minha vermelho e branco deslizando pela Presidente Vargas com o seu maravilhoso “Chico Rei”, cantando o belíssimo samba de Geraldo Babão e Djalma Sabiá e com a extraordinária lavagem das cabeças enlouquecendo a multidão ), não me tiravam este prazer ainda que a raiva fosse muita (essa, por exemplo, de 1964, continua até hoje, vou confessar). Há, porém, um desfile que foi definitivo. Na verdade, sem medo de errar, nenhum outro consegui chegar perto dele até hoje, de qualquer escola – e olha que houve lindos, ganhando ou não, como alguns da Mangueira(“Recordações do Rio Antigo”, por exemplo, este campeão em 1961, exatamente sobre o Salgueiro, com seu “Vida e Obra de Aleijadinho”, “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, ‘”Yes, Nós Temos Braguinha”), da Portela (“Hoje tem Marmelada”, “Lendas e Mistérios da mazônia” e “Lapa em Três Tempos”), Mocidade (“Ziriguidum 2000” , “Festa do Divino” e, sobretudo, “Tropicália”), Beija-Flor (“Sonhar com Rei, Dá Leão” e o inesquecível “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”), Império (“Viagem Encantada Pindorama a Dentro”, “Os Cinco Bailes do Império”, etc…). Foi em 1963, a aurora surgindo por trás da Candelária, e aquele mar branco, salpicado de vermelho e de dourado, entrando na avenida com o seu “Xica da Silva”. Quem viu, jamais esquecerá, Quem não viu, perdeu, para mim, a mais bela demonstração de arte popular que tive a oportunidade de ver em meus muitos e muitos anos de vida. Certamente, entre os maiores espetáculos de teatro no Brasil em todos os tempos, este momento de extraordinária criatividade (como esquecer a perfeição do minueto em ritmo de samba executado por Mercedes Batista e seu grupo, ou a entrada triunfal de Isabel Valença, como a própria Xica?), de irretocável sofisticação e bom gosto, tem lugar certo e cativo. E o delírio de todos, a emoção dos desfilantes cantando o maravilhoso samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho (que começava assim, “Apesar de não possuir grande beleza,/ Francisca da Silva alcançou o seio da mais alta nobreza”, para terminar “João Fernandes de Oliveira mandou construir/ Um lindo lago e uma belíssima galera/ e uma riquíssima liteira para conduzi-la à Missa da capela”), foram a prova irrefutável da importância toda especial daquele momento.
           Só por esse desfile, o Salgueiro já ocupa um espaço que todos os seus famosos detratores em nome de um funtamentalismo insuportável insistem em dar contornos infernais. Realmente, este fundamentalismo (ainda que seja incrível ler, como eu li, há uns dois anos, que uma determinada escola estava muito chata porque abusava de apenas duas cores, exatamente aquelas de sua bandeira!), não é de hoje que ele existe, não senhor. Como sempre, ele começou a agir já naqueles anos, antes mesmo da triste “redentora”, em cima da escola da Tijuca (sempre à frente de seu tempo e revolucionária), e que, até hoje, apesar de tudo, ainda sofre com a má vontade destes fundamentalistas e seus tristes seguidores, mesmo que ultimamente seus desfiles tenham ficado bem longe daqueles memoráveis de altri tempi, com exceção do campeão “Peguei um Ita no Norte” e do, injustamente, vice-campeão, “Me Masso se Não Passo pela Rua do Ouvidor”, ambos no início dos anos 90, este muito mais belo, aquele mais arrebatador (já ia me esquecendo de outro, que, incrivelmente chegou em terceiro, “Sou Amigo do Rei”, como o “Me Masso”, de autoria de Rosa Magalhães). O lema do Salgueiro, “Nem Melhor, Nem Pior, Apenas uma Escola Diferente”, é precioso e verdadeiro. Assim , a escola foi , só que, desculpem-me as outras, melhor, muito melhor, com as irmãs Marinho (que saudades delas iluminando a avenida e os nosso corações, assim como da Paula, da Narcisa…), de pierrô, colombina e arlequim, em “Histórias do Carnaval Carioca “ (“Salve o Rio de Janeiro/ seu Carnaval, seu Quatrocentão/ Feliz Abraço do Salgueiro à Cidade de São Sebastião”, dizia o lindo samba de Geraldo Babão e Valdevino Rosa), junto àqueles burrinhos de vime absolutamente poéticos (algo até hoje imitado), ou com os desfilantes rodando loucamente, descalços, en plein soleil, no emocionante “Bahia de Todos os Deuses” (onde Bala e Manoel Rosa nos diziam “Bahia, os meus olhos estão brilhando, meu coração palpitando de tanta felicidade, És, a rainha da beleza universal…”), ou com a arrasadora “Festa para um Rei Negro”, com o impecável “O Rei de França na Ilha da Assombração”, e com o impactante, com seus camelos, tendas, bigas puxadas por zebras, deixando todos de boca aberta, “”Os Segredos das Minas do Rei Salomão” (uma das maiores criações de Joãosinho Trinta). Mas para ser sincero e verdadeiro, foi também pior, muito pior (mas sempre diferente), nas catástrofes de “Os Amores Célebres”, o anticlímax absoluto após a “História do Carnaval Carioca”, de “Minha Madrinha, Mangueira Querida”, (ou Tengo Tengo, como foi mais populamente conhecido), outro anticlímax após o avassalador “Festa para um Rei Negro” ( para muitos o “Pega no Ganzé, Pega no Ganzá”), e na maioria de seus desfiles dos anos 80, entre tristes homenagens a Getúlio e ridículos e feíssimos cantos à ecologia.
           O que importa, porém, é que o Salgueiro foi, é e será sempre fundamental, haja o que houver, Isso ninguém lhe pode tirar. Que o digam seus carnavalescos (vivos ou mortos), Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Marie Louis Nery, Maria Augusta, Rosa Magalhães, Joãosinho Trinta e tantos outros que por ele passaram ou nele começaram para depois irem brilhar em outras agremiações fazendo-as receber ainda a bela luminosidade salgueirense para se tornaram grandes como o são hoje. Sem a vermelho e branco e seu manancial de artistas (Renato Lage, o high-tech da Mocidade passou por lá também, para beber na fonte da sabedoria), afirmo, tranquilamente, simplesmente não seriam. Por isso, pode acontecer o que quiser, meu coração, ainda que justo e imparcial, será vermelho e branco forever and ever.

 
Marcos Ribas de Faria
Site Notícia e Opinião

08/Fevereiro/2002

 

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