A vida como ela é,
bonitinha, mas ordinária...
Assim falou Nelson Rodrigues
Justificativa:
Adentrar o
universo de Nelson Rodrigues parece tarefa das mais improváveis, porém
através de nosso desfile, faremos esta tentativa. Falar de sua vida, de
sua obra é lançar um olhar sobre nós mesmos, despidos de todo o senso de
pudor.
O certo é ver que apesar de tantos julgamentos a respeito de
seu legado, Nelson Rodrigues acompanhou com reflexões profundas a vida
do país que ele via a sua frente, como testemunha e ator de eventos
cruciais de nossa história recente.
Através de suas frases memoráveis, somamos as suas
experiências da vida e seu pensamento a respeito dela. A vida como ela
é, reflete este caleidoscópio, multiface de suas opiniões que variam
entre o cáustico e o irônico, passando pelo cinismo velado, sobre os
tipos cariocas, seu cotidiano e as relações familiares, além da política
e claro, a sua paixão, o futebol.
A Viradouro ao apresentar Nelson Rodrigues como tema, ousa
retratar de certa forma o pensamento desse grande gênio de nossa
literatura e dramaturgia, usando como álibi uma de suas frases: Toda
unanimidade é burra!
Sinopse:
Nelson,
Sou eu o samba,
que te pede passagem, sou a Viradouro a fazer a viagem em seu universo
irreverente, aos subúrbios da sua inspiração. Pela lente de seu olhar,
serei a realidade inventada, infielmente retratada da vida como ela é, a
sua, cruel e crua a girar no carrossel da emoção.
Eis-me aqui qual anjo pornográfico, a desfilar na rua, num
delírio de carnaval, a te invadir a alma, te espiar a mente, perverso,
eloquente, assim, como quem trai ou mente, não ver a mulher nua, pelo
buraco da fechadura. Serei a flor de obsessão que desabrocha, fruta
madura regada de drama e humor.
Vou me tornar todas as mulheres, rasgadas das páginas de
Suzana Flag, escravas do amor, destinadas a pecar e a amar demais algum
homem proibido. Caberá em mim o que é descabido, assassinos passionais,
suicidas enlouquecidos.
Viverei aquelas gordas fofoqueiras, viúvas tristes ou
solteiras ressentidas, e nelas encarnarei aqui, o flerte, o adultério, o
romance fugaz e o eterno amor. Serei a feia, a interessante, a esposa, a
amante, engraçadinha, a bonitinha, a dama do lotação ou então quem sabe,
Nelson, aquela que morde, a que arranha e aquela que apanha, pura, casta
e sem pudor.
Lembrarei de momentos mágicos, do Mário Filho abarrotado, dos
domingos ensolarados, de futebol e picolé, serei o Sobrenatural de
Almeida, o inexplicável, o oculto que habita a sombra das chuteiras
imortais, me tornarei seu craque predileto, sem caráter. Posso ser
também Didi, Garrincha e Pelé.
Estarei na torcida que agita, a xingar o juiz ladrão que
errado apita, e na bola que se ajeita pro gol daqueles Fla-Flus
ancestrais. Entrarei na discussão dos bares com a cabeça cheia, falando
dos lances, dos romances da vida alheia e da sua grande paixão, e se
preciso for, virarei a casaca, me farei de pó-de-arroz de corpo e alma,
e pra te fazer graça, tricolor de coração.
Abrirei as cortinas do seu teatro, sem o embargo da censura, e
exporei a arte, a vida, a realidade pura, a lâmina afiada a rasgar a
carne da plateia num desafio, e arrancar-lhes o aplauso, ou o asco, ou o
arrepio, e até mesmo o silencio da incompreensão. Serei o seu grito na
boca de cena, a fala cotidiana da verdade plena, aberta para a
consagração.
E morrerei todas as noites, eventualmente duas, aos sábados e
domingos em todas as vesperais, na pele de seus personagens, vestirei
pra sempre as suas fantasias que bem poderiam ser reais. De vestido de
noiva ou em toda a nudez, serei castigado como a serpente, no juízo
crítico, inclemente, com ou sem pecado, perdoado e sem perdão, sob as
luzes da ribalta, no palco da sua mais incrível imaginação, senhor
Rodrigues.
Por fim, iluminarei a grande tela e vou estrelar sua obra,
projetando o filme que passou na sua mente, e revelar na Viradouro que
seu espírito paira no viver real de nossa gente. Hoje, você é o anjo que
nos cuida, anjo escritor, teatrólogo e jornalista, anjo desconhecido,
indecifrável; anjo de todos os sentidos, dos escancarados e dos
escondidos, de nossa burra, porém verdadeira unanimidade. Obcecado anjo
chamado Nelson Rodrigues, que em frases nos define a vida como ela é,
bonitinha mas ordinária.
Nelson por Nelson
"Nasci a 23 de
agosto de 1912, no Recife, Pernambuco. Vejam vocês: eu nascia na rua Dr.
João Ramos (Capunga) e, ao mesmo tempo, Mata-Hari ateava paixões e
suicídios nas esquinas e botecos de Paris. Era a espiã de um seio só e
não sabia que ia ser fuzilada. Que fazia ela, e que fazia o marechal
Joffre, então apenas general, enquanto eu nascia? A belle époque já
trazia no ventre a primeira batalha do Marne. Mas por que "espiã de um
seio só?" Não ponho minha mão no fogo por uma mutilação que talvez seja
uma doce, uma compassiva fantasia. Seja como for, o seio solitário é, a
um só tempo, absurdamente triste e altamente promocional.
Mas a belle époque não é a defunta que, de momento, me
interessa. Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas
lembranças não terão nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar do
kaiser, amanhã do Otto Lara Resende, depois de amanhã do czar, domingo
do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não falar de Augusto
Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a atualidade, a tensão, a magia da
presença física. Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O que eu quero
dizer é que estas são memórias do passado, do presente, do futuro e de
várias alucinações". (p.11)
"Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de
pitanga. Caju de praia e pitanga brava. Hoje, tenho 54 anos bem sofridos
e bem suados (confesso minha idade com um cordial descaro, porque, ao
contrário do Tristão de Athayde, não odeio a velhice). Mas como ia
dizendo: - ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju
contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um
desses processos regressivos e fatais". (p.15)
"1913. O que a memória consciente preservou de Olinda foi um
mínimo de vida e de gente. Eu me lembro de pouquíssimas pessoas. Por
exemplo: - vejo uma imagem feminina. Mas é mais um chapéu do que uma
mulher. Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada a ver
com a vida real. Vagavam, diáfanos, por entre as mesas e cadeiras.
Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral de retrato
antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não os ouvia. O que
me espanta é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro
de uma única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um
canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era
silêncio". p.15-6)
"Já falei da louca, filha da lavadeira. Foi a primeira mulher
nua que vi na minha infância. E, ainda agora, ao bater estas notas,
tenho a cena diante de mim. Eu me vejo, pequenino e cabeçudo como um
anão de Velásquez. Empurro a porta e olho. O espantoso é que sinto uma
relação direta e atual entre mim e o fato, como se a memória não fosse a
intermediária. A demente tem a tensão e o cheiro da presença viva. Mas
como ia dizendo: - no fundo, encostada à parede, está a nudez acuada".
(p.39)
"No primeiro momento, a glória é casta. Desde garotinho, a
minha vida fora a desesperada busca da mulher primeira, única e última.
No período da fome, o amor passara a um plano secundário ou nulo. Mas a
glória é ainda mais obsessiva, mais devoradora do que a fome. Eis o que
eu queria dizer: _ com o artigo de Manuel Bandeira, só eu existia para
mim mesmo. Tudo o mais era paisagem." (...)
"Sim, ainda me lembro do primeiro dia do artigo de Manuel
Bandeira. Depois do trabalho, fui para casa. Tranquei-me no quarto como
se fosse praticar um ato solitário e obsceno. Comecei a reler o poeta.
Primeiro, repassei todo o artigo, da primeira à última linha. Depois,
reli certos trechos. O final dizia assim: - "Vestido de noiva, em outro
país, consagraria um autor. No Brasil, consagrará o público". Antes de
mais nada, o poeta influiu na minha auto-estima". (p.162)
"Uma meia dúzia aceitou Álbum de família. A maioria gritou.
Uns acharam "incesto demais", como se pudesse haver "incesto de menos".
De mais a mais, era uma tragédia "sem linguagem nobre". Em suma: - a
quase unanimidade achou a peça de uma obsessiva, monótona obscenidade.
Augusto Frederico Schmidt falou na minha "insistência na torpeza". O dr.
Alceu deu toda razão à polícia, que interditaria a peça; meu texto
parecia-lhe da "pior subliteratura.
Assim comecei a destruir os meus admiradores. Foi uma
carnificina literária. Mas não me degradei, eis a verdade, não me
degradei". (p.215)
"O número de ex-admiradores aumentava. E, pouco a pouco, ia
fundando a minha solidão. Fora proibida a representação de Álbum de
família. Em seguida, houve a interdição de Anjo negro. De peça para
peça, me tornava, e cada vez mais, um caso de polícia. Escândalo nos
jornais. E, um dia, encontro-me com Carlos Lacerda. Pediu o meu novo
texto: - "Você me dá, que eu escrevo contra a censura". Ótimo. No dia
seguinte, fui levar-lhe uma cópia." (...)
"Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser
um engajado. Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica. Lembro-me de
Isaac Paschoal me perguntando, depois de um discurso de Prestes: - "E
você? Qual é a sua contribuição?". Baixei a vista, rubro de vergonha. E,
como ainda não contribuíra, senti-me um fracassado nato e hereditário.
Daí porque não posso ver, hoje em dia, o Guimarães Rosa, sem uma
sensação de deslumbramento. Durante anos, pratiquei a solidão com certo
pânico e certa vergonha. E eis que vem o autor de Sagarana e ergue a sua
torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca. Nada existe: -
só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa escreve. Há a
guerra nuclear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma. A
torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século". (p.218)
(Excertos de A menina
sem estrela - Memórias, de Nelson Rodrigues; São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, sob a coordenação
de Ruy Castro).
Alexandre Louzada |