Malandragem, adeus:
com exceção do Zé, o resto é mané...
Sinopse
"Sapato
brilhando, chapéu panamá, sorriso faceiro, dosagem alcoólica controlada
no nível da simpatia, um olho na acompanhante, outro nas acompanhadas,
os dois nas cabrochas do recinto. Andar solto, cheio de ginga, papo
despretensioso e mortal. Fiel à boemia; à monogamia, jamais. Trabalho,
nem pensar. Taí o retrato falado do malandro imortalizado na nossa história.
Eis a figura essencial da história do samba."
Não é de
hoje que a malandragem está associada ao Rio de Janeiro, berço do samba.
Tanto que não foi por acaso o surgimento da primeira escola de samba
carioca, a "Deixa Falar", no bairro do Estácio, tradicional
reduto da massa de desocupados e trabalhadores informais, envolvidos
com pequenos furtos, biscates, jogatina e exploração de mulheres.
Assim como
a malandragem, Ismael Silva, grande "bamba", também se criou
no Estácio e foi um dos fundadores da "Deixa Falar" - que,
no Carnaval de 1929, desfilou na Praça Onze em um espetáculo ainda bastante
tímido, se comparado às proporções que alcançaria anos depois. O detalhe
curioso - e malandro - é que grupo de foliões, grande parte formado
por figuras bem manjadas, sobretudo nas delegacias, sambaram escoltados
e protegidos justamente pela polícia.
Segundo
o auto-denominado malandro Bezerra da Silva, malandragem e ilegalidade
não fazem parte da mesma moeda: "Malandro é malandro, mané é mané".
O que supostamente tenta diferenciar, de forma curta e grossa, é o malandro
verdadeiro daquele (o tal mané) que extrapola na dose da malandragem
e, digamos, "atropela o samba".
Porém o
malandro - como tipo social e histórico - apareceu pela primeira vez
em nossa literatura no romance "Memórias de um Sargento de Milícias",
escrito em 1856 por Manuel Antônio de Almeida. Na obra, o autor capta
intuitivamente que a emergência da malandragem como opção de vida dos
pobres livres no século XIX resulta de um processo histórico. A obra
retrata as mudanças ocorridas na mentalidade colonial no Rio de Janeiro
do início do século XIX com a chegada da família real ao Brasil, numa
linguagem seguindo os padrões clássicos da época, em meio às aventuras
e desventuras do malandro carioca Leonardo, seus amores e dissabores,
sua paixão cheia de obstáculos pela sonsa Luisinha, a sorte que veio
bater à sua porta lhe presenteando com várias heranças e sua promoção
ao cargo de Sargento de Milícias.
Mais tarde,
entre 1920 e 1940, na "Os Bruzundangas", de Lima Barreto,
no samba emergente, nas crônicas de Orestes Barbosa e de outros jornalistas
e escritores, como Viriato Correa, a figura do malandro seria novamente
abordada. Em paralelo, reaparece o "bamba", complementar e
menos ambíguo, que ora se sobrepõe ao malandro, ora dele se diferencia.
Ambas as
figuras tipificaram-se (quando não se originaram) nas "maltas"
dos capoeiras do século XIX, que se espalharam por diversos bairros
e freguesias cariocas. As primeiras maltas começaram a organizar-se
mais ou menos em 1850, quando a capoeira começa a espalhar-se pelo Rio
de Janeiro e absorver outros grupos, dentre eles imigrantes portugueses,
negros libertos, intelectuais, policiais, jovens da elite, etc. Cada
"malta" comandava uma região e não admitia a invasão de seu
território. As "maltas" que mais se destacaram foram:
-
Os "Guaiamus": de tradição mestiça, eram ligados aos Republicanos
do Partido Liberal. Absorveram intelectuais, crioulos, homens livres
e imigrantes. Atuavam na região central.
-
Os "Nagoas": de tradição escrava e africana, eram ligados
aos monarquistas do Partido Conservador. Atuavam na periferia.
Os integrantes das "maltas" trajavam roupas brancas, calça
pantalona com boca de sino, camisa ou terno de linho com sapato de
bico fino. Usavam geralmente um lenço de seda no pescoço, que funcionava
como proteção aos golpes de navalha. Um chapéu na cabeça e nas mãos
uma faca, navalha ou bengala para qualquer imprevisto. Durante o século referido, as maltas de capoeira aterrorizaram a população
e as autoridades cariocas. Com a Proclamação da República a história
passou a ser outra em nome da "Ordem e Progresso". O Marechal
Deodoro da Fonseca, com apoio do então chefe de polícia do Distrito
Federal Sampaio Ferraz , estava decidido a conseguir o que o "Império"
não havia conseguido: o extermínio da prática da capoeira e das maltas.
Para começar, autorizou uma mudança no código criminal, que é sintetizado
no decreto 847 de 1890 e é intitulado "Dos Vadios e Capoeira". Perseguidos pela polícia, aos poucos os chefes das "maltas"
foram encarcerados, exilados ou exterminados. Para alguns estudiosos, essas representações alimentam-se de indícios
históricos de interações subculturais, as quais produziram efetivamente
tipos de individualismo urbano (o dito "malandro") na cidade
do Rio de Janeiro, que, posteriormente, alargaram-se, disseminaram-se
e se metamorfosearam, mas cujas figuras originais ainda povoam o imaginário
brasileiro. Atualmente, segundo Mestre Camisa, mais de cinco milhões de brasileiros
praticam a capoeira hoje em dia, arte que se originou nos estados
da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Mestre Camisa tem 50 anos e
começou a gingar quando tinha apenas 10. Fundador da Associação Brasileira
de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira - Abada Capoeira, em 1988,
foi um dos capoeiristas que participou das várias conversas promovidas
pelo Ministério da Cultura para a elaboração do programa. Com uma
vida toda voltada para o aprendizado da capoeira, Mestre camisa disseminou-a
por muitos países, tornando-a internacional e conhecida mundialmente. Entre 1930 e 1940, na chamada Era Vargas, e contrariando a ideologia
do trabalho, a figura do malandro carioca se consolidou, e o processo
de sua construção social, acabou inserido no bojo de um projeto de
nação concebido no calor do embate entre o menosprezo do caráter mestiço
do povo brasileiro e as aquelas que seriam suas conseqüências diretas:
originalidade cultural recheada por enorme diversidade étnica e debilidade
civilizacional, coroada pela repulsa ao espírito "moderno"
do trabalho. Marcado por um passado escravocrata, o malandro foi tentando encontrar
um meio termo entre a afirmação de sua marginalidade e a pressão do
Estado, que queria integrá-lo no lema positivista de "ordem e
progresso". Inicialmente, o malandro recusou o trabalho formal,
preferiu viver de bicos, e isso demandava certos talentos/habilidades,
como prostituição, jogo, música etc. Todo malandro tinha uma mulher
que "trabalhava" por ele. Ele batia nela, claro, quando
ela saía da linha. E foi desse tipo de relação que surgiu a expressão:
"mulher de malandro". Nos ditos "bons tempos", a navalha era a arma do malandro,
de preferência. Mas, na verdade, esse objeto raramente era mortal. Desavença,
o malandro resolvia na porrada, porém com elegância e uma certa ética.
Morte, só quando a questão era muito grave. No mais, a navalha servia
apenas para assustar ou dar um talho "educativo" numa mulher
rebelde ou num desafeto. Em 1935, numa entrevista para O Debate, Noel Rosa retomaria o tema
da malandragem, queixando-se: "O morro do Castelo foi abaixo
e a polícia 'espantou' os malandros inveterados e 'escrachou as cabrochas'.
Mas o malandro não desapareceu. Transformou-se, simplesmente, com
a sua cabrocha, para tapear a polícia. Ele já está de gravata e chapéu
de palha e ela usa meias de seda". Contudo, a figura do malandro e seu modo de agir já tinham sido mote
para um embate poético entre dois grandes sambistas. Em 1934, Wilson
Batista lançou o samba-canção "Lenço no Pescoço", exaltando
a típica figura do malandro, que muito se assemelhava a ele próprio,
conhecido freqüentador dos redutos da malandragem carioca, presença
habitual nas zonas de baixo meretrício, ao lado de figuras conhecidas
pela polícia. Em inesperada resposta, Noel Rosa, já sambista famoso
da Vila Isabel, que costumava cantar a malandragem em versos de exaltação,
compôs "Rapaz folgado". Na letra, além de descaracterizar
o malandro desenhado por Batista, Noel partia para o ataque pessoal.
Assim teve início um embate musical, que se desenrolaria pelos meses
seguintes - para a felicidade da música popular brasileira. Batista
criticou o rival em "O Mocinho da Vila" e ganhou de troco
a genial "Feitiço da Vila", que, por sua vez, foi retrucada
em "Conversa Fiada", um grande samba de Wilson Batista,
mas com resposta arrebatadora: "Palpite infeliz", um retumbante
sucesso de Noel Rosa, no qual exaltava a Vila Isabel e trazia em sua
defesa os grandes redutos do samba carioca, tirando crédito da crítica
do rival. Batista, porém, não se deu por derrotado e lançou "Frankenstein
da Vila", fazendo crítica ao defeito físico no rosto de Noel.
O adversário não respondeu, e terminou o polêmico desafio em posição
mais honrosa que o infeliz opositor. No fundo, o estímulo para a guerra musical não partira da visível
controvérsia entre malandragem e vadiagem. Sabia-se que ambos eram
malandros de carteirinha, cada um a sua maneira, e só poderiam brigar
por um único motivo: mulher. Batista teria roubado de Noel o coração
de uma moça, supostamente a dançarina de cabaré Ceci. Resumo da ópera:
os dois "malandros" tiraram uma casquinha da desfrutável
Ceci, produziram grandes sambas e, por fim, fizeram as pazes, tornando-se
amigos. Eis que imperou a malandragem. Numa época em que ser malandro implicava uma certa aura romântica
e rebelde, o pernambucano João Francisco dos Santos, o mítico Madame
Satã, podia se vangloriar das suas credenciais: era capoeirista e
mestre no manuseio da navalha. Numa mistura contraditória de macheza
valente com sensibilidade homossexual, assumido em plenos anos 30,
ele reinava como camareiro, cozinheiro, transformista, leão-de-chácara
e ladrão no submundo da Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro. Lapa dos Arcos, pondo diante dos nossos olhos a densidade do passado
ido e vivido porém presente; dos bares onde a saideira é eterna; dos
conflitos envolvendo quem não leva desaforo pra casa. Lapa de Miguelzinho, Meia-Noite, Edgar - malandros históricos. Todos nós, cariocas, amamos a Lapa, somos a Lapa, com seus contrastes,
lugar especial que o espírito do Rio sobrevoa, livre, leve, solto,
bem-humorado, sentindo-se bem nessa zona livre de todas as censuras. Lapa da malandragem. Dos becos e ladeiras, onde se guardam todas as
preciosas histórias de um Rio boêmio e de bem com a vida e seus prazeres.
Um deles, Heitor dos Prazeres que não tinha vindo a este mundo para
viver de tristezas. Desde pequeno, fazia valer o sobrenome, atraído
irresistivelmente para o desenho e para a música. O menino Lino, como
o chamavam a família e os amigos, era negro, e aos garotos de sua
cor não era permitido praticar as artes dos brancos. Nada disso, entretanto,
pôde detê-lo. A partir dos anos 20, ele mostrou aos cariocas que era
bom de música. Com o passar do tempo, foi ficando mais malandro. Mas
era um malandro do bem. Fugia de casa, tocava pela cidade, e voltava
com os bolsos cheios de dinheiro para ajudar a família. Heitor dos Prazeres cresceu e tornou-se uma figura lendária da história
do samba e do carnaval carioca. Amigo dos bambas, ajudou a fundar
algumas das mais importantes escolas de samba do Rio, a Mangueira,
a Portela e a Imperatriz Leopoldinense. Compôs sambas célebres e teve parceiros ilustres, como os mestres
Pixinguinha e Cartola. Com Noel Rosa, assinou uma de suas marchas
carnavalescas mais famosas, "Um pierrot apaixonado". Em 1951, o Brasil inteiro saberia que ele também era um mestre com
as tintas e os pincéis, o que pode ser conferido na exposição "Heitor
dos Prazeres - Um Pierrô Apaixonado", composta por telas que
provam que, para este malandro incomum, música e pintura eram quase
uma coisa só. Contudo, a transformação mais radical da figura do malandro ocorreu
na década de 1950, quando o malandro deixou de ser bandido e virou
um cara esperto, cheio de lábia e com jogo de cintura. Esse foi o malandro estilizado que acabaria inspirando Walt Disney
a criar o Zé Carioca, atendendo a uma solicitação do governo norte-americano,
que, no intuito de proteger o continente das ideologias nazistas,
buscava uma maior aproximação com os países da América Latina. O personagem, cujas principais características eram arrumar comida
grátis, evitar o trabalho e conquistar garotas, fez sua estréia em
alto estilo nos jornais estadunidenses, em outubro de 1942. A página
inicial mostrava uma panorâmica do Rio de Janeiro, fechando lentamente
no barraco que era a moradia de um jovem alegre e folgazão papagaio
chamado Zé Carioca. Ainda nesse período - e também no embalo da política de boa vizinhança
implementada por Roosevelt -, o Bando da Lua acompanhava Carmem Miranda,
vestido de chapéu e camisa listrada. Formado em 1931 no Rio de Janeiro,
o Bando da Lua foi o primeiro no Brasil a harmonizar as vozes, seguindo
a moda da época nos Estados Unidos, e com isso criou uma mania nacional.
Gravaram vários discos com músicas de carnaval nos anos 1930. Ao todo,
38 discos, de 1931 até 1940. Com o sucesso, excursionaram pela Argentina.
Os "malandros cariocas", começaram a tocar com Carmem Miranda
ainda nos anos 30. E, ao ser convidada para fazer uma turnê pelos
Estados Unidos, a cantora exigiu que o grupo a acompanhasse. Resultado
da parceria: diversos espetáculos e longas-metragens produzidos por
Hollywood. Nos anos 60, o malandro sofre nova transformação e de novo desce para
o asfalto. "Todo mundo podia ser malandro, o comerciante, o político,
o cara esperto na esquina." Malandro de verdade usava terno branco impecável, quase sempre gravata,
cabelos rigorosamente engomados pela brilhantina e chapéu para sair
à rua, com o qual cumprimentava as damas, como bom cavalheiro. Sim,
senhor, esse pessoal tinha também educação. Sem falar no asseio impecável
e no respeito às normas, mesmo na contravenção e no submundo, por
mais incrível que possa parecer. Por exemplo, malandro subornava policial,
mas jamais ousaria matar um policial. Isso era coisa da ralé, da escória,
de uns pobres e miseráveis gatos pingados que viviam na sarjeta, rejeitados
até mesmo nos prostíbulos mais decadentes.
Fábula sobre um certo Malandro Pelintra
"Aos 98 anos de idade, Moreira da Silva, internado e nas últimas
para os homens - jamais para a espiritualidade! -, pede licença ao
Pai Celestial e faz uma rápida visita à morada dos Anjos. Ao chegar
no céu, fica estarrecido; não é nada daquilo que está escrito nos
livros. Não existe paraíso, nem inferno, amarras, conceitos ou preconceitos
humanos. A um só tempo, pessoas, lendas e personagens se misturam
e se completam. Tudo é perfeição, amor e felicidade. Não há espaço
para o sofrimento. Choro, só se for de alegria. O sambista é recebido com toda a pompa por uma comitiva de querubins.
Lima Barreto pega o violão, Viriato Correa improvisa a letra e Cartola
empresta sua voz para homenagear o ilustre visitante. Capoeiristas
dão piruetas sobre as nuvens, agitando suas poderosas asas fosforescentes
para iluminar a noite. As cabrochas, sempre muito perfumadas e sorridentes,
balançam com tamanho entusiasmo e encanto as cadeiras, que Moreira
da Silva já está a ponto de esquecer de sua última missão terrena
e cair na farra. Wilson Batista e Noel Rosa fazem um brinde ao companheiro
de copo, boemia e malandragem. Ceci, o motivo do antigo desafeto entre
Rosa e Batista, puxa uma cadeira e a oferece a Moreira, que, ainda
maravilhado com tudo aquilo, senta-se, agradece, enche o copo e bebe
um longo gole. Sua hora está próxima, mas, antes, precisa fazer algo
muito importante. Por isso, veio pedir ajuda aos verdadeiros malandros. - A noite não é mais a mesma - lamenta-se o compositor -, está cada
vez mais triste. O bom malandro anda desasado, sem brilho, sem força.
Gafieira, hoje é baile funk. Sapato lustrado, ninguém usa mais. Só
andam de tênis. O terno de linho virou jeans e camiseta suja, rasgada.
Agora, navalha cospe fogo, é metralhadora. O pileque se transformou
em vício, ameaça, corrupção, seqüestro. Nem o lenço se salvou, saiu
do pescoço e foi parar na cara, para esconder a identidade do sujeito.
Tudo lá embaixo, é desespero e dor. - Tomou outro gole. Prosseguiu: - Quem vai mandar daqui pra frente nas calçadas do Rio? Daí, como
já estou mais pra cá do que pra lá, me antecipei um pouco e vim pedir
socorro, em nome dos velhos tempos. Abalados com as más notícias, todos perguntam em coro: - Como é que poderemos ajudar o amigo, se já não somos mais daquele
mundo? - Arte não morre. Os compadres ainda são lembrados e festejados pelo
tanto que fizeram para defender a boemia, o samba, as cabrochas, os
menos favorecidos, enfim, por terem mostrado que malandro é malando,
mané é mané. Aqui, surge o Zé Carioca, cheio de gingado e astúcia.
E vem dele a idéia de pedirem ajuda ao Zé Pelintra. - Não é ele o valentão - joga -, o defensor dos injustiçados? Todos silenciam. Aos poucos, resolvem aceitar a proposta do aloprado
Zé Carioca. Todos se ajoelham e invocam Zé Pelintra, que vem pendurado
num rabo de um cometa. Mesmo já sabendo do que se trata, o caboclo
os escuta com muita atenção. Mestre Zé Pilintra gosta muito de ser
agradado com presentes, festas, ter sua roupa completa, é muito vaidoso
e tem duas características marcantes: uma é de ser muito brincalhão,
dançarino, mulherengo, outra é ficar mais sério, parado num canto
assim como sua imagem observando o movimento ao seu redor, mas sem
perder suas características. ele vem na linha de baianos e pretos
velhos, fuma cigarro de palha, bebe batida de coco, pinga coquinhos
ou simplesmente cachaça, sempre com sua tradicional vestimenta: calça
branca, sapato branco (ou branco e vermelho), seu terno branco, sua
gravata vermelha, seu chapéu branco com uma fita vermelha ou chapéu
de palha e finalmente sua bengala. Depois de um bom gole de Jurema,
acende um cigarro de palha, traga e, lançando a fumaça em círculos
no rosto de Moreira da Silva, dá o veredicto: - Ajudarei vosmecê. Hoje à noite, vou me dividir em muitos e entrar
nas garrafas de cerveja. Quando os arruaceiros estiverem reunidos,
começarei meu trabalho. Dito e feito. Horas depois, os bares da Lapa começam a ser invadidos
por todo tipo de gente da noite. - Malandro de verdade, não precisa de tiro, resolve as desavenças
no trago e no gogó! Se vocês são, de fato, filhos legítimos da boemia,
sentem-se e bebam sem medo e sem culpa! Lá pelas tantas, após um tal de encher e esvaziar copos, Zé Pelintra
começa a agir. Nas garrafas dos verdadeiros malandros, o álcool se
transforma rapidamente em força, gingado, virilidade, sedução. Tanto,
que não demora nada para as cabrochas veteranas voltarem ao bar e
se sentarem à mesa dos genuínos reis da noite. Em contrapartida, para os manés, a bebida vai caindo feito ácido no
estômago dos invasores: dá enjôo, desmaio, trança as pernas e enrola
a língua da rapaziada. Percebendo que seus namorados não passavam de manés metidos a besta,
as cabrochas mais novas vão rapidamente mudando de time. Num piscar
de olhos, todos já estão dançando e cantando em uma divertida roda
de samba, que se arrastará até de manhãzinha. Entidade de palavra, Zé Pelintra separa o joio do trigo. A boemia
está de volta, alegre e livre dos falsos malandros. De alto de uma nuvem dourada, o talentoso sambista Moreira da Silva,
o mais malandro de todos, sorri feliz e em paz. Despede-se dos amigos
eternos com um "até breve", pois sabe que, antes das nove
da manhã, estará de volta - só que na pele vaporosa e cintilante de
um extraordinário Anjo." Com a morte de Moreira da Silva, aos 98 anos de idade, acredita-se
que tenha ido embora o último malandro. Malandro daqueles cantados
por Jorge Benjor, que sabem que é bom ser honesto e são honestos só
por malandragem. No idioma de Morengueira: "Se um vigarista soubesse
quanto é gostoso estar do lado da lei, se tornaria honesto só por
vigarismo". Este era o retrato fiel de Moreira. "A malandragem
nunca existiu para mim. Sou um bípede mamífero que sempre trabalhou",
pontificava. O cantor e compositor Antônio Moreira da Silva, o Morengueira, criador
do samba-de-breque, nasceu no Rio de Janeiro. Há alguma controvérsia
sobre a data exata de seu nascimento, mas é ele quem informa: "Nasci
em 1902, num 1º de abril, na rua Santo Henrique, hoje Carlos Vasconcelos,
na Tijuca", e morreu em sua cidade natal, no dia seis de junho
de 2000. Como o bom malandro não anda sempre na linha, "que o trem pega",
Moreira também tinha os pés bem fincados na orgia. Durante a juventude
freqüentou rodas de baralho, botequins e a zona do meretrício. Conviveu
com os malandros históricos da Lapa, gente como Brancura, Manoel Carretilha,
Waldemar da Babilônia e João Cobra. E com bambas do Estácio, como
Marçal, Bide, Baiaco e Ismael Silva. Tornou-se figura conhecida da
boemia. "Convivi muito tempo no meio de malandros, e eles respeitavam
minhas batucadas", dizia. "Eu sempre ia às festas na Praça
Onze, onde tinha roda com rasteira, rabo-de-arraia. Era magrinho,
novinho, mas entrava na roda e era respeitado", comentava sem
falsa modéstia. "Hoje estou humildemente, modestamente, na história
do samba". E na nossa historia social, ao longo deste último século, pudemos
ver nas artes, no cinema, no teatro, na música, na televisão, na literatura,
tipos diferenciados de malandros sendo homenageados, cantados e interpretados. A Ópera do Malandro, de Chico Buarque de Holanda, estreou em julho
de 1978, no Rio de Janeiro. Mas a Ópera continua absolutamente atual,
se lembrarmos a crise de um País entregue à falcatrua, ao comércio
de bundas, ao capital estrangeiro, à corrupção - questões prementes
desde o final dos anos 70, quando a peça foi escrita. Ambientada em um bordel, ela conta a história de um malandro carioca,
tentando sobreviver nos anos 40, final da ditadura de Getúlio Vargas
- clima bem parecido com o de 1978. Como espetáculo musical, que é,
a trama gira em torno de Max, ídolo dos bordéis. A temática, como
não poderia deixar de ser, retrata a malandragem brasileira no submundo
da cidade do Rio de Janeiro, com todos os ingredientes capazes de
nos transportar àquela época, com a chegada das meias de nylon e dos
produtos norte-americanos, que entravam clandestinamente. Não muito
diferente da cena das falsificações vendidas pelos camelôs de nossa
cidade maravilhosa. Para o espetáculo, Chico Buarque também compôs o samba "Homenagem
ao Malandro", uma das melhores composições do musical: "Eu
fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem que conheço
de outros carnavais / eu fui à Lapa e perdi a viagem / que aquela
tal malandragem não existe mais..." E prossegue, retratando o
"novo" malandro, "o malandro profissional", "oficial",
"candidato a malandro federal". Até arrematar: "Mas
o malandro pra valer / não espalha / aposentou a navalha / (...) /
até trabalha / mora lá longe e chacoalha / num trem da Central...". Trata-se de um samba rasgado, com direito a solo de trombone do grande
Maciel, breques e uma adequada interpretação de Chico Buarque. No
álbum duplo do musical, só lançado em dezembro de 1979, "Homenagem
ao Malandro" é interpretado por Moreira da Silva. E, para finalizar nosso passeio carnavalesco sobre a malandragem carioca,
não poderíamos esquecer dos sambas bem-humorados sobre a malandragem,
os quais foram marcantes na carreira do pernambucano Bezerra da Silva,
que veio para o Rio de Janeiro aos 15 anos, escondido em um navio.
Em contato com os blocos carnavalescos cariocas, ele desenvolveu o
talento como cantor e compositor. Suas composições retratam a vida
e o comportamento dos moradores da favela. Chegou a gravar discos
que venderam cerca de três milhões de cópias. "É isso aí, malandragem,
malandro é malandro, mas não é mané. Se liga!", dizia Bezerra. E se o último malandro se foi, agora com exceção do Zé, o resto é
mané.... Mas não tem jeito: no fim de cada madrugada, quando os albores da
manhã dissolvem as trevas e trazem o imperioso chamado do trabalho,
os "mais sensíveis" ainda podem ter uma visão do malandro
entrando por um dos becos, com seu chapéu de lado, a mulata pendurada
no braço e a eterna navalha no bolso.
Severo Luzardo
Filho
Pequeno dicionário
do malandro carioca
-
Achacador - Pessoa acostumada a tomar dinheiro emprestado
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Água Pintada - Leite
-
Amarra - Pulseira de relógio
-
Araquiri - O mesmo que duvidoso. Se algo não é bom é de araquiri.
-
Amplexo - Abraço
-
Bife de padaria - Pão
-
Boate de lona - Circo
-
Buraco do Pano - Bolso da frente das calças
-
Cabreiro - Desconfiado
-
Calibrina - Cachaça
-
Campanear - Olhar, observar
-
Chá-de-urubu - Café
-
Chave-de-cadeia - Sinônimo de problema, aborrecimento. "Aquele(a)
ali é chave-de-cadeia."
-
Chinfra - Pose
-
Derrepenguente - De repente
-
Desguiar - Desviar
-
Esculachar - Desleixar
-
Farol - Vigia/ou quando acende o farol!!!
-
Fio de Antena - Macarrão
-
Fritada - Tapa na cara
-
Gordurame - Comida, refeição
-
Igrisia - Rusga, problema, rixa
-
Maracanã - Prato fundo
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Marola - Confusão
-
Mina - Menina, garota
-
Mixola, mixo - De pouco valor
-
Neca - Nada, não
-
Presepada - Zoeira
-
Porão - Bolso de trás das calças
-
Pichibéqui - Anel
-
Queimar - Ficar irritado. O mesmo que "morder" (gíria)
-
Sonar - Dormir
-
Vargulino - Vagabundo
-
Xavecada, xaveco - Embromação, enrolação
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