Você sembo lá... que
eu sambo cá - O canto livre de Angola
Sinopse:
O Brasil e Angola são ligados por laços afetivos,
linguísticos e de sangue. São quase irmãos pela história que os une.
Desde a Antiguidade, já existiam bestiários que
repertoriavam as estranhezas da fauna e das características
geográficas. Segundo o jesuíta Sandoval (1625), “ Os calores e os
desertos da África misturavam todas as espécies e raças de animais,
em redor de poços, criando um ecossistema particular, capaz de
engendrar hibridações monstruosas. Tal circunstancia fazia da
África, o continente de todas bestialidades, o território de eleição
do diabo.”
As bestialidades de que falava tal escritor eram
hipopótamos e rinocerontes, chacais e hienas, zebras e girafas,
avestruzes e palancas negras, entre outros.
A estranheza também era causada pela cor da pele de seus
habitantes.
As regiões abaixo do deserto do Saara, chamadas de
Ndongo e Matamba, eram habitadas por dois povos
distintos: os ambundos e os jagas. Os primeiros eram excelentes
ferreiros, cuja habilidade era muito apreciada. Os jagas, por sua
vez, se destacavam como guerreiros invencíveis, pois se exercitavam
diariamente em local apropriado a que chamavam de quilombo.
Na época da expansão marítima portuguesa, esses dois povos
possuíam um soberano a que chamavam de Ngola.
No século XVII, a região de Angola era governada por uma
rainha chamada Njinga, que era ambundo pela linhagem materna
e jaga, pela paterna. Expressão do encontro de dois grupos étnicos,
que apesar de semelhantes, tinham organizações distintas, Njinga
os governou com sabedoria. A persistência do incômodo causado pelo
seu sexo, entretanto, levou-a a assumir um comportamento masculino,
liderando batalhas pessoalmente e vestindo de mulher seus muito
concubinos, que faziam parte de seu harém.
Apesar da fama de Njinga ter sido construída na
luta da resistência contra o domínio de Portugal, entre os
portugueses o reconhecimento de seu talento político e capacidade de
liderança surgiu a partir de seu desempenho como chefe de uma
embaixada que o então Ngola do Ndongo, enviou ao governador
português, em 1622. Recebida com uma pompa que deve tê-la
impressionado, Njinga também teria causado impacto entre os
portugueses ao agir e falar no mesmo idioma que o deles, como chefe
política lúcida e articulada.
O interesse português era um só – mão de obra para outra
colônia de além–mar, o Brasil. Embora fossem ricos em minerais, em
diamantes, nada disso os interessou. Pois na época, o reino de
Angola era o grande manancial abastecedor dos engenhos do Brasil.
Sem o açúcar, não havia o Brasil. Sem negros não haveria o açúcar.
Sem Angola, não havia negros. E, sem Angola não havia o Brasil.
Apesar da resistência de Njinga, o comércio era
feito de modo avassalador. Os negros cativos ficavam em barracões,
que podiam acolher cerca de 5.000 almas, que eram embarcadas rumo ao
novo continente, em viagem longa, cuja duração podia ultrapassar
dois meses, dependendo das condições climáticas. O porto e partida
era Luanda, o maior centro de comércio escravagista africano. A
cidade alcançara essa posição a partir do momento em que os escravos
passaram a ser embarcados diretamente para as colônias americanas.
Aproximadamente doze mil viagens foram feitas dos portos africanos
para o Brasil, para vender, ao longo de três séculos, quatro milhões
de escravos, aqui chegados vivos.
A despedida era simples. A cerimônia de batizado era na
hora do embarque: - Seu nome é Pedro; o seu é João; o seu,
Francisco, e assim por diante. Cada viajante recebia um pedaço de
papel com um nome escrito. Então, um intérprete ironicamente dizia:
“Sois filho de Deus, a caminho de terras portuguesas, esquecei tudo
que se relaciona com o lugar de onde viestes, agora podeis ir e sede
felizes”.
A morte social despe o escravo de seus ancestrais, de sua
família, e de sua descendência. Retira-o de sua comunidade e de sua
cultura. Ele é reduzido a um exílio perpétuo.
E lá se vão, num navio abarrotado, sem alimentos
adequados, sem sequer espaço para se acomodarem. Levam na memória,
os cantos, as danças, os ritmos, as tradições. Levam Njinga e
seu espírito combativo, a levam na memória, apesar das ordens para
esquecerem tudo....
Os navios negreiros aportavam no Cais do Valongo,
longe do rebuliço da cidade. Alí os escravos viviam em depósitos, a
espera para serem comprados. Pois foi em 1779, por ordem do
Vice-Rei, marquês de Lavradio, que nesta região se localizaram o
cais, o mercado e as precárias instalações para abrigar os recém
chegados.
Por ironia do destino, foi neste mesmo cais, que anos mais
tarde, receberia em 3 de setembro de 1843, a princesa Tereza
Cristina, futura Imperatriz do Brasil, e também mãe da princesa
Isabel, aquela que terminaria de vez com o regime de escravidão. O
cais foi remodelado e uma cenografia decorativa escondia aos olhos
reais as imagens da pobreza extrema e a humilhação a que eram
submetidos os recém chegados.
Presente em vários lugares em que houve a escravidão, a
coroação de um rei e uma rainha negra era uma forma de diminuir o
sentimento de inferioridade social, assim como as irmandades
permitiam a reunião para reverenciar algum santo, mas sobretudo como
relacionamento social entre os escravos.
“Nesta santa irmandade se farão todos os anos hum Rey e
huma rainha os quais serão de Angolla, e serão de bom procedimento,
e terá o rey tão bem seu voto em meza todas as vezes que se fizer
visto da sua esmolla avantajada.” O titulo a que se dava era Rei do
Congo e a Rainha Njinga. A fama de Njinga atravessou
os séculos e os mares, sendo evocada em festas populares no Brasil.
Mas antes de se alojar no imaginário popular, as lições de Njinga
foram muito provavelmente postas em prática na luta dos quilombolas
de Palmares.
Com o intuito de se divertirem, as irmandades
aproveitavam-se das comemorações dos dias dedicados a este ou aquele
santo, para organizarem seus festejos. E era quase que o ano
inteiro, pois S. Pedro, S. João, Santo Antonio, o Espírito Santo e
outros tantos mais, se espalhavam no calendário. Tudo era
oportunidade para comemorações festivas.
Na Festa do Divino, segundo Manuel Antonio de Almeida,
embora os músicos fossem muito apreciados pelo publico, ele
considerava que eram desafinados e desacertados: “Meia dúzia de
aprendizes de barbeiro, negros, armados este, com um pistom
desafinado, aquele com trompa diabolicamente rouca formavam uma
orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia as delicias dos
que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja. Mas era musica
buliçosa, um convite aos jovens à dança”. Os instrumentos que usavam
eram basicamente trombetas, trompas, cornetas, clarinetas e flautas
e os de corda – as rabecas, violões, tambores, bumbos e triângulos
também eram encontrados.
A festa reunia uma enorme economia e produção. Os fogos,
no Campo de Santana, era a maior atração. Depois as barracas, com
comidas e bebidas, show de ginástica e muita cantoria. A que fazia
mais sucesso, entretanto, era a barraca conhecida como Três
Cidras do Amor, frequentada pela família e pelo escravo, pela
plebe e a burguesia. Era um salão um tanto acanhado. Num dos cantos
havia um teatrinho de bonecos com cenas jocosas e honestas. O
conjunto de atrações das Três Cidras do Amor era longo e
variado. Peças como Judas em Sábado de Aleluia eram
encenadas. Depois do inicio do baile com valsas, as apresentações
cada vez mais se afastavam de uma pretensa seriedade, e a dança
tradicional e eletrizante do povo brasileiro assumiam o espaço, com
os dançarinos bamboleando, cantando, requebrando-se, ondulando as
nádegas a externuar-se, e dando umbigadas. Os homens e as mulheres
que realizavam os indefinidos e inimitáveis requebros, umbigadas e
movimentos lascivos não nasceram nos ricos salões de baile, estavam
nas ruas, reuniam-se nas festas de largo, onde seus ritmos
prediletos eram apresentados como atração e divertimento.
A junção dos violões, cavaquinhos e flautas já era
praticada pelos músicos barbeiros,ou como insistem alguns
especialistas, havia sido realizada nos casebres populares do Rio,
mais precisamente na Cidade Nova.
Lá, destaca-se Tia Ciata, dando continuidade aos
festejos que já aconteciam no Campo de Santana, abandonado pelos
festeiros após a Reforma do local. Tia Ciata nasceu em Salvador em
1854, e aos 22 anos, trouxe da Bahia o samba para o Rio de Janeiro.
Foi a mais famosa das tias baianas, trazendo também o candomblé, do
qual era uma ialorixá. Na Casa da Tia Ciata ecoavam livremente os
batuques do samba e do candomblé.
Segundo Mary Karash, das danças escravas, como o lundu,
capoeira e jardineira, a que ficou conhecida no século XIX por
“batuque” é a mais próxima do samba carioca moderno.
O termo SAMBA, possuía uma clara origem angolana. O
verbo kusamba, que significava saltear e pular, provavelmente
expressasse uma grande sensação de felicidade.
Hoje,"O Samba é considerado como um produto da história
social brasileira". De acordo com o presidente do Iphan, "O gênero
musical e coreográfico pode ser considerado tanto como sendo próprio
de comunidades culturais identificáveis (executantes e brincantes
inseridos em agrupamentos sociais de pequena escala) e também no
contexto da vida urbana, e da indústria cultural mediatizada. O
vigor do Samba enquanto gênero cultural encontra-se em sua
plasticidade e capacidade de gerar inúmeras variantes, como o
samba-de-roda, o samba carioca, o samba rural paulista, a bossa
nova, o samba-reggae e outros mais, em suas diversas
interpretações."
Aqui na Vila Isabel, que é de Noel, e de
Martinho, devemos a ele esta história. Ele que, nos anos 70, fez
sua primeira viagem ao continente negro e durante muitos anos foi a
ponte entre o Brasil e Angola, sendo considerado um Embaixador
Cultural. Levou a música brasileira como um presente ao povo
amigo e irmão, através das vozes tão brasileiras de Caymmi, João
Nogueira, Clara Nunes e ainda Chico Buarque, Miúcha, Djavan, D.
Ivone Lara, entre outros. Três anos mais tarde, Martinho elaborou um
projeto trazendo a música angolana para os brasileiros, a que chamou
de O Canto livre de Angola.
Nosso samba.... seu semba ...por isso enquanto eu sambo
cá.... você semba lá...
Rosa
Magalhães (Carnavalesca) e Alex Varela (historiador)
Bibliografia consultada:
-
ABREU, Martha. O Império do Divino. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
-
ALENCASTRO, Luis Felipe. O Trato dos Viventes. A
Formação do Brasil no Atlântico Sul. S. Paulo: Cia. das Letras,
2000.
-
KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro,
1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
-
LOPES, Nei. Kitabu. Rio de Janeiro: Editora Senac, 2005.
-
MARTINHO DA VILA. Kizombas, Andanças e Festanças. Rio de
Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1992.
-
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado, 1992.
-
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: Escravos, Marinheiros e
Intermediários no trafico de Angola ao Rio de Janeiro. São
Paulo: Editora Schwarcz, 2005.
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