Tijuca com Nelson Rodrigues pelo Buraco da Fechadura
"Sou um menino
que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa.
Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é,
realmente a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um
anjo pornográfico."
Nelson
Rodrigues
1ª Parte:
Anjo Pornográfico
A Origem:
1912 - no dia 23 de agosto, num clima de revolução
da conturbada política pernambucana, no exuberante cenário da nossa
Veneza brasileira dos arrecifes (RECIFE), abre os olhos para a realidade
além-útero o menino anjo, para o qual a crueza da vida como ela é,
açoitaria sua personalidade e sua inacreditável, fascinante e trágica
trajetória pelo nosso mundo.
A vida de Nelson
Rodrigues e de sua família é um verdadeiro acervo de emoções e um
palpitante romance que ofusca até mesmo suas histórias, nos arrastando
para sua realidade ainda mais dramática do que seus escritos.
Sua trajetória
engatinhando como repórter policial no jornalismo, área de domínio
de sua família, o brilho no Teatro que o consagraria, suas crônicas
que enriqueceram o nascente cinema brasileiro e o fascínio pelo futebol
e sua infatigável e eclética produção literária fazem-no um marco
em nossa cultura.
Apesar desta fenomenal
produção o único espaço em que ele é reconhecido unanimamente é o
do teatro, o qual nem sempre foi seu palco principal e se houve um,
foi o do JORNAL.
Poucos sabem que
o restante de sua produção é tão genial quanto seu teatro, e os que
sabem não se conformam que o mundo não saiba.
Este enredo é
uma dose de reabilitação da figura polêmica e brilhante de Nelson
Rodrigues para o qual até mesmo seus piores inimigos não lhe negaram
o talento e não foram poucos os que o chamaram de GÊNIO.
2ª PARTE: O Jornalismo
As redações dos jornais no Rio anos 20 tinham
muito em comum uma sala comprida, muitas escrivaninhas, cabides para
os chapéus, telefones de manivela e máquinas de escrever que poucos
sabiam usar pois a maioria dos redatores escrevia a mão com penas-tinteiro,
alguns usavam viseiras como nos filmes, e escrever era o dom de família
de Nelson Rodrigues.
Seu pai, Mário
Rodrigues, com a experiência adquirida no JORNAL DA REPÚBLICA"
e "JORNAL DO RECIFE", em Pernambuco, lhe habilita a fundação
de seu próprio jornal, chamado "A MANHÃ", no Rio de Janeiro
onde Nelson aos 13 anos e meio iniciava sua vertiginosa e brilhante
carreira de jornalista, criando seu próprio jornalzinho intitulado
"ALMA INFANTIL".
O sucesso das reportagens de crimes passionais, tão comuns naquela
época, enriquecidas pelo talento mórbido de Nelson Rodrigues, que
sempre às voltas com a morte, o levava a não perder os velórios da
vizinhança da rua, aliás, pródigas em cenas impressionáveis.
Ë precisamente
esta sensibilidade pelo lúgubre, pela paixão desenfreada, pelo sexo
ultrajante e luxúria que o fortaleceria para escrever suas quase incontáveis
e deslumbrantes crônicas que viriam a ser filmes de grande sucesso
do cinema brasileiro. Sua facilidade para emprestar carga dramática
aos fatos mais corriqueiros das ruas, munido apenas de dados essenciais
era suficiente para ele navegar pelo tema da paixão proibida e do
amor impossível, eternizado pelo pacto de morte.
Requintes de descrição
e uma capacidade para imaginar diálogos e cenários prendia o leitor
por várias edições. Das crônicas empavonadas que Nelson gostava de
exibir, sempre em espaços nobres dos jornais, "ZOLA’, sua
última crônica no "A MANHÃ" é uma fundamentada argumentação
de que a sociedade melhora quando se lhe expõem os podres.
Apenas 49 dias depois de perder o jornal "A MANHÃ" para
seu sócio, Mário Rodrigues lança seu novo jornal e o de mais escandaloso
sucesso: "CRÍTICA" inédito tanto no projeto gráfico de exuberância
visual como no estardalhaço das manchetes e textos, do qual se gabava
de ser o matutino de maior circulação do Brasil: 130 mil exemplares.
3ª Parte: O Teatro
Com Nelson Rodrigues completara-se no palco
a semana de Arte Moderna de 1922 com a fundação do moderno teatro
brasileiro, na mesma relação de Carlos Drummond para a poesia, VilIa
Lobos para a música, Portinari para a pintura e Oscar Niemeyer para
a arquitetura. Este é, realmente, o peso de sua obra na cultura brasileira.
Transformou-se
num dos mais udos, republicados e encenados escritores brasileiros,
tendo por maior mérito a transposição para a literatura a linguagem
das ruas do Rio de Janeiro, intérprete de um jeito brasileiro de ser
que o endeusaria, no qual se confundem preconceitos, taras e miséria
espiritual, que frutifica numa alquimia monetária garantida, com sexo,
violência e infelicidade.
Nelson Rodrigues
tornou-se um obsessão, suas peças não saem de cartaz, na televisão
"A vida como ela é..." era quadro fixo no programa Fantástico,
e no cinema já foram exibidos vinte filmes inspirados em suas obras.
Personagens vazios,
esquemáticos e repetitivos adquirem ares de figuras trágicas e a tara,
explicação última para a psicologia deles, vira explicação de tudo.
Ele escreveu dezessete
peças de teatro e deixou como herança um morticínio que, diga-se,
também estão presentes nos clássicos gregos e shakesperianos mas,
no entanto, eles servem tão somente de chamariz de bilheteria, exatamente
como na frase de um de seus personagens "Assim é o povo: tem
fome de sangue e excremento’.
Nelson Rodrigues
foi um revolucionário em vários sentidos, mas principalmente no setor
mais eleborado e acabado de sua produção: a obra de dramaturgo.
Não há crítico
ou historiador de teatro que não tenha exaltado o impacto de "VESTIDO
DE NOIVA", encenado em 1943, no Rio.
Ele se opunha
a uma visão do teatro como algo fútil e inconsequente, inovando ao
romper com os preceitos de unidade de tempo e ação, misturando realidade,
a memória e os sonhos da personagem central. Quanto a linguagem trazia
a novidade do diálogo econômico, direto e coloquial, no qual, praticamente,
se inventa um idioma num mundo de traição, golpe baixo e falta de
escrúpulos.
A chave única
para explicar as tragédias da vida, segundo Nelson, e o grande traço
do caráter nacional brasileiro de que somos todos canalhas, não por
opção - que teríamos o direito de recusar, mas por destino, com o
qual temos que nos conformar e interpretar as crônicas de nossas próprias
vidas.
Forte em todos
os setores, principalmente na política e esporte, porém, a grande
sensação era última página dedicada aos crimes. Diariamente se descobria
um caso aterrador do submundo carioca e toda sorte de adultérios e
os explorava até o último pingo de sangue ou esperma.
Numa temporada
em Recife, em 1929, redescobrindo a terra natal, mergulhou fundo na
boemia local, experiência que ressurgiria muito tempo depois em sua
talvez maior peça de teatro: "SENHORA DOS AFOGADOS".
Nelson até mesmo
em brincadeiras com os primos, era mórbido em suas encenações de teatro
adolescente como fingir-se de atropelado, horrorizando seus tios.
Teria pela frente muitos atos daquelas encenações infantis, porque
de repente, com a rapidez de uma bala, a família Rodrigues seria protagonista
de uma cena trágica com o irmão Roberto, e seriam atirados a vida
real.
Sua marcante passagem
no jornal de Roberto Marinho "O GLOBO" junto com seus irmão
Mário e Joffre, transformou o futebol em algo para vender jornal,
revolucionando a crônica esportiva. O futebol parecia ser seu destino,
porém, um convite para o lançamento de um novo jornal seria um salto
mortal em sua vida: "ÚLTIMA HORA" onde escreveu sua mais
famosa obra: "A VIDA COMO ELA É" título de uma coluna baseada
num fato real da atualidade que a um toque da pena de Nelson se desenrolava
um fascinante enredo que incendiava a cidade e mais tarde o reconciliaria
com o teatro.
4ª Parte: As
Crônicas
Nelson Rodrigues escritor de massas, acabaria
por se incorporar a paisagem brasileira desnudando o caráter da classe
média que dá o tom da alma brasileira nas crônicas fascinantes de
um Brasil torrado ao sol dos subúrbios cariocas, violento e familiar,
ingênuo, trágico e sedutor como a vida realmente é. Através de suas
crônicas Nelson trouxe o Brasil aos palcos.
O que o singulariza
é que sua obra desabrochou, não de uma intelectualidade de gabinete,
mas nas redações de jornais, nas delegacias de polícia, estádios de
futebol e na sua incrível popularidade.
Populares não
eram apenas suas peças, suas personagens e frases eternas, mas também
uma grande, e talvez a maior, personagem de si próprio. Ele era um
tema central e constante nas obsessões de suas crônicas, como o designavam
"flor-de-obsessão".
Nelson flor-de-obsessão
passava e repassava o filme de sua infância para explicar e justificar
o Nelson adulto, que olha a vida pelo buraco da fechadura, moralista
e obsceno, e como nas peças, também em suas crônicas, vemos a persistência
do sexo e morte como tema, e como houve morte na vida real de Nelson!
A tragédia estava
plantada na existência do grande cronista brasileiro, e as mortes
todas foram tema de suas "Confissões", e certo que como
autor trágico, ele procura nos atingir nas matrizes socias mais profundas
do nosso ser.
Desnudando toda a terrível crueza da condição humana, não permite
a redenção a nenhum de seus personagens, nem mesmo nos momentos mais
poéticos, cometendo o equívoco de considerar o homem um animal irreversivelmente
degradado que se enredam em conflitos ultrajantes que só encontram
solução no aniquilamento.
A vida para Nelson
Rodrigues, não foi menos cheia de surpresas e amarguras do que sua
obra, mas ao final de sua vida já pacificado pelos embates e num Brasil
menos conflitado abrandou o tom de suas crônicas e, depois de um período
de enfrentamentos, sua arte voltou a ser reconhecida pela elite intelectual
como algo importante na cultura deste país.
5ª Parte: O Futebol
Antes da conversão, sem dor, para o Fluminense
o futebol já existia para Nelson como fervoroso torcedor do Andaraí,
time da região da Aldeia Campista. Naturalmente, ele não faria carreira
como jogador de futebol e seu interesse pelo jogo iria diminuir à
medida que descobria que não estava tão interessado na bola, e sim
no homem que a chutava.
O que importava
era a ‘pátria em chuteiras", o flagoroso grito de vitória
na conquista do milagre das três Copas. Para Nelson era o esplendor
da saúde do povo brasileiro, algo além do que os olhos podiam ver,
a pulsante vitalidade que o esporte viria instilar nas artérias verde-amarelas.
Sua capacidade
de criar personagens não se limitava ao teatro, criava-os também nos
campos de futebol, dando-lhes apelidos que os eternizaram.
O mundo da bola,
esse objeto mágico, surrado pelas chuteiras imortais, conta como o
Brasil saiu da penumbra de uma depressão para a glória mundial na
conquista do tricampeonato, era mais um dos cenários que seria povoado
pela imaginação fértil de Nelson Rodrigues, que fala de vitórias e
derrotas e deixa um lição para a posteridade: ‘sem alma não se
chupa nem um picolé, muito menos se joga uma Copa do Mundo".
E foi repleto
de alma auri-verde que o futebol ascendeu o Brasil qual estrela de
cinema, no cenário internacional.
6ª Parte: O Cinema
Ninguém podia ser mais plástico, engraçado
e polêmico ao escrever do que Nelson Rodrigues; escreveu com seu nome,
pseudônimos e com nome de outros. Conheceu de perto os algozes, carrascos,
censores e toda gama de poderosos do regime vigente e, ao mesmo tempo,
era um homem identificado com o povo.
A televisão tornou-o
ainda mais popular, era o inventor do teatro brasileiro moderno, provou
o sucesso, o fracasso, o gosto da morte... e tudo em escala superlativa.
De fato, só o
currículo profissional já impressiona: reportagens policiais, futebol,
crítica, crônica, conto e folhetim. Fez parte de jornais e revistas
no berço, na plenitude e na morte, atravessando todas as revoluções
gráficas e estilísticas da imprensa e acompanhou as revoluções e as
transformações políticas do país. Tinha e sempre tem muito para contar
e sabe contar como ninguém.
É um filme?
Não. É o fantástico
gênio da grafia da vida que no seu vôo pelo nosso mundo legou a cada
um de nós um sopro de sua arte imortal, como centelha estimulante
de humor, graça e compaixão.
O cinema brasileiro
descobriu um filão: Nelson Rodrigues sobrevivente da torturante censura,
que paralisava qualquer produtor, na monótona perseguição de suas
obras como se fossem uma ameaça ao tecido social.
Nelson se caracteriza
pelos seus apaixonantes personagens que povoam seu rico e inesgotável
acervo literário e realizam nossas próprias misérias inconfessas.
Assistiria uma
grande ressurreição cinematográfica, numa rara combinação de sucesso
comercial e de crítica, entusiasmando o público pelo cinema nacional.
Sua trajetória,
de escritor maldito a gênio, pelo cenário cultural brasileiro com
sua marcante e indecifrável personalidade, atrai e capta nossa admiração
transformando-o numa estrela que sobe.
7ª Parte: O Menino
Anjo
A reconstituição da assombrosa história de
Nelson Rcdrigues, que é mais espantosa do que qualquer uma de suas
histórias e da vida trágica de sua família, é capaz de confundir até
mesmo o mais devotado admirador.
Ele é louco ou
gênio? Tarado ou santo? Reacionário ou revolucionário? Nenhum escritor
brasileiro foi tão polêmico e como se todos os pecados e sofrimentos
infligidos em suas obras, migrando para sua vida real, o cobrisse
com o manto da redenção imbuindo sua imagem com uma aura de vida imortal
que só os homens que realizam plenamente seus destinos são contemplados.
Assim é Nelson,
o eterno menino-anjo para o qual até a "pátria em chuteiras",
num jogo internacional, guardou um minuto de silêncio, paralisando
a partida para homenagear sua chegada ao zênite das estrelas.
Do cenário de
sua vida, extraiu a riqueza de sua obra nas vidas de seus inesquecíveis
e imortais personagens, vivendo intensamente os óbvios ululantes,
aos quais muitos não creditam importância. Nelson como um garimpeiro,
lapidador e ouvires fabricou suas perenes jóias literárias que, mesmo
sem a toga, o fizeram alçar vôo para a imortalidade.
Viveu, cresceu
e maturou sua arte, mas continuou sempre sendo o menino-anjo pornográfico
que via a vida pelo buraco da fechadura.
Chico
Spinosa
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