Uma aventura musical na
Sapucaí
A São Clemente tem
uma espécie de dever: dever de sonhar, e sonhar sempre!
E assim nossa Escola se constrói em ouros e sedas,
Inventa palcos, cenários, para viver o seu sonho:
Lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar
quando a regra é vender; voar num limite improvável, tocar o
inacessível chão!
(Do
musical Homem de La Mancha, e da Poesia de Fernando Pessoa)
Sinopse:
Na escuridão do
terceiro-sinal, foco de luz no mestre-maestro, delirantemente aplaudido
pela gente que vai assistir a aventura musical. Silêncio.
Prólogo:
Seguindo o apito e a batuta, a orquestra no recuo do fosso ataca, e há
música encantadora no ar; é quando a cortina amarelo-negra abre-se
lentamente! “Gatos” (Cats) esgueiram-se na arquibancada/platéia, e vão
evocando as “Memórias”, refazendo a História: “Senhoras e senhores,
bem0vindos ao desfile do ‘Teatro Musical Brasileiro’! E por quê
apaixona-se a São Clemente pelo início do teatro musicado no Brasil?
Porque, como ela, as operetas curtas daquele tempo eram satyíricas,
críticas e irreverentes. E aproximavam o povão da mais fina arte!
Influência francesa que gerou nos trópicos, um ‘u-lá-lá’ pra lá da
malandragem. Mais ou menos 1850. bom humor era tudo, rapidez rimava com
qualidade, e, para quem entende, um pingo é letra: a parisiense nasceu
na Lapa, e ia da canção, do xote à valsa, da marzurca ao tango. Só no
truque da ingênua maliciosa, e o diabo que a carregue lá pra casa!”.
Luz
em resistência. Um astro vai descendo a alegórica escadaria de luzinhas
piscantes, acompanhado daquilo que secretamente nos bastidores chamamos
da sua “Comissão de Frente”: lindíssimas vedetes, em maiôs cavados com
franjas de diamantes falsos e transparência sobre os seios, escoltadas
por bailarinos, luxuosamente vestidos em fraques. A vida é um “Cabaret”.
Ouve-se a voz do Mestre de Cerimônia: “Ora, se os desfiles de Escolas de
Samba são os maiores dos musicais de que se tem notícia, nada melhor que
esta grande aventura musical clementiana falar em ritmo de samba, de
como viveu e vive esse grande e longevo negócio, que reúne na ribalta
empresários, artistas, técnicos: a tal gente do show business – Nós!
Avante legítimas representantes carnavalizadas desta verve, as Comissões
de Frente, espetáculo à parte na Avenida, quando sobem pernas, arrancam
roupas, despertam o aplauso e o inesperado acontece: é a Broadway
tupiniquem! A abertura é mágica!”.
O
palco/passarela abre-se, e sobe o espetacular elevador com a sua
montanha verdejante onde “A Noviça Rebelde” rodopia, cantando para as
suas crianças que a “Mùsica, é Divina Música”: “Precisa de dinheiro para
botar o bloco na rua, levantar cenários, contratar estrelas, fazer
figurinos, vender bilhetes e acender a rica luz: aí o prazer do público
é total, quando a beça Estrela seminua com cara de safadinha, faz
biquinho e começa solfejando os acordes”.
Desce
da escuridão do urdimento a magistral teia com a “Mulher Aranha”,
arrebatadora Rainha e Madrinha da Companhia. Das laterais, no chão
surgem as mulatas com o estonteante figurino “Sopro de Purpurina”. O
primeiro setor de assentos, em suspense, puxa o fôlego, sem acreditar na
tamanha opulência flutuante sobre si. Confetes prateados caem
salpicados. A aracnídea está em êxtase, pendurada quase solta no espaço,
e declama coquete: “Leques de plumas abanam em glória a primeira das
grandes: Chiquinha Gonzaga! E o Brasil era cantado em prova, verso e
música em 1885, com um pé no caipira e outro na cidade grande. Festa de
São João, conversa de botequim, prosa de malandro, vida de bairro, amor
feliz. Artur Azevedo apareceu logo depois, saindo através de uma cortina
de gotas de vidro: adorava meter o pau (ui!) no político-social, sem
jamais esquecer “pernas à mostra e seios nus...”. Igualzinho ao
carnaval! Olhar bem humorado, uma forma de ver a vida: temas alegres,
língua apimentada e um bububú no bobobó. Duplo sentido, para um povo
cujo sexto sentido avisava que de perto ninguém é normal”.
Uma
parede de elásticos brilhosos é atravessada por ritmistas, quando
ouve-se a sirene: - Teatro?, pergunta a “Bela”. – Musical?, devolve a
“Fera”. – Sapucaí!, Exclamam os dois juntos. Entre românticos balanços
de flores, o casal avança na narrativa: “A cena, a dança, a cantoria.
Sopravam ventos de influência da Liberdade, América, numa revolução
cenográfica e coreográfica. Tiraram a orquestra, botaram a banda, e o
público exigia que arrancassem as meias daquelas pernas que eles queriam
ver em pele. E veio a fantasia musicada na Praça Tiradentes: era hora
das estrelas de primeira grandeza dando ataque e atraindo multidões,
divas da pá virada em decotes abissais e rabo de penas raras. Fila na
porta, empurra-empurra e o ingresso a tapa: todos pagavam para ver a
belíssima e talentosa Loura falsa”.
Do
Balcão da Casa Rosada, envolta na fumaça de gelo-seco e construído do
papelão e compensado, “Evita” abre os braços. E, em vez de cantar “Não
Chores por Mim Argentina”, inesperadamente faz seu tributo de amor ao
musical brasileiro, porque o espetáculo não pode parar (a não ser na
frente do júri), e continua dobrando a esquina: “Foi aí que o jogo
avançou: girou a roleta do Cassino, porque o Brasil Pandeiro esquentava
seus tamborins e fazia os dados rolarem: todo o país queria Rosetá e em
1945 Walter Pinto mandava: “Canta Brasil”. E não é que o país resolveu
investir? A maquinaria espetaculosa em efeitos de cena se tornou tão
importante quando as Estrelas. Abre e fecha, sobe e desce, acende e
apaga, ou dá ou desce! Deus é brasileiro, e do limão estrangeiro fez-se
uma limonada à tropicália, e o Brasil conhecia o Brasil. Deu tão certo
que o mito grego de Orfeu, quem diria, foi parar na favela brasileira; e
a querida senhora Pigmaleão armou sua barraca de feira por aqui. Com
Carlos Machado o musical brasileiro alcança sucesso internacional”.
Uma
gaiola espelhada é trazida pelo ciclone do “Mágico de Oz” e dentro está
a menina Dorothy. Guardas com cassetetes de strass batem no pobre Homem
de lata. “os Miseráveis” surgem pelas laterais, tentando socorrer. Parte
triste da História, tentam calar os Musicais Brasileiros: “ A língua do
Zé-Povinho estava afiada e fazia anedotas com a vida dos poderosos. Tudo
devidamente amordaçado pela censura, que fez a cortina fechar pelos idos
dos 60. Proibido proibir deu nó em pingo d’água e fez a tigresa (Sonia
Braga) estrelar e deixar todo mundo de cabelo (Hair) em pé, tal a força
deste libelo, que duas vezes o Brasil aclamou seduzido por tanta
qualidade ideológica e musical. Acordes para os hippies. Faça humor, não
faça a guerra, nós temos um sonho: deixe o sol entrar! Foi uma Roda-Viva
para os brasileiros, cuja profissão sempre foi a esperança. Como Calabar
resistiram, a Gota d’água no oceano da incompreensão”.
Deitada
numa lua de paetês surge “Vitor ou Vitória”. A indecifrável fala sobre
gays, machões e lembranças musicadas: “Nisso jogaram gliter. Anunciada a
era e Aquarius, houve o rompimento, a mudança, a fuga dos padrões e a
busca do novo. Deboche de músculos másculos, pernas cabeludas, cílios
postiços e saltos altos. Foi com os Dzi croquetes que devolvemos à
Europa o que dela tínhamos recebido um século antes: o vigor do teatro
musicado, desta feita, andrógino. Mas isso era só um lado da moeda.
Faltava um pedaço, aquela marca de pegador do brasileiro, do machão que
não é Mané. E a sacada da Ópera do Malandro foi fazer do Brasil um
bordel, quando o homem brasileiro assumiu de vez sua vocação para o
cantar, dançar e interpretar. No rodopio dos 80 e 90, do conteúdo
político partimos para revisitar os mitos de nossa música popular.
Ganhou o samba, que viu de novo Assis Valente, as Irmãs Batista e
Elizeth Cardoso, revividas e exaltadas em grandes montagens; a música
popular brasileira virou fio condutor de uma torrente de paixões”.
Todo
o elenco internacional de imorredouros personagens, para sempre em
nossos corações, estão em cena. Entraram Arlequins, Pierrots e
Colombinas para receberem calorosos a carroça brasileira dos
Saltimbancos, que fez cantar gerações seguidas de crianças, e
“Sassaricando, e o Rio inventou a Marchinha...”. O flash, a emoção do
sassarico, porque sem sassaricar, esta vida é o “ó”! Maria Escandalosa
junto com a Galinha e o Jumento, brasileiríssimos, cantam “Yes, Nós
temos Bananas”. Pós modernos, falam da virada do terceiro milênio.: O
Brasil e o mundo, a aldeia global fazendo prosperar abaixo da linha do
Equador o que antes era reserva de Nova York, Las Vegas, Paris e
Londres: o trânsito de diretores, produtores, autores, a festa das
plateias brasileiras. O mistério extraordinário do musical: Raia
equilibrava-se na pequena Loja dos Horrores; esfregávamos os olhos para
saber se era verdade que a mesma Bibi que cantava o pequeno pardal Piaf,
também se rasgava nas estranhas ao cantar os fados de Amália; Marília
podia ser Dalva de Oliveira ou Elis, ou todas Elas por Ela; e agora José
Mayer é o definitivo Violinista no Telhado.
Grande
dança final, com toda a companhia executando impecavelmente a marcação
coreográfica e o canto afinado do Samba-Enredo. Ciclorama da vida,
mágica do Teatro, entretenimento profissional apaixonado. A fagulha que
restará eterna. Milhares de microlãmpadas formam palmeiras artificiais,
orgulhosas de serem simulacros. Micos leão dourados de acetato caem
penduradas. “Deus lhe pague”: “Dizer que conseguimos copiar de maneira
impecável as montagens estrangeiras é pouco: damos um passo à frente,
vamos além da virtuose técnica, adicionamos à perfeição deles o
chica-chica-boom da gente bronzeada que faz pulsar o já montado, de
maneira diferenciada. Há um quê de povo renovador em nós”.
Epílogo:
surge o Fantasma da Ópera voando a bordo de seu colossal lustre de
cristal. Por trás da mascar misteriosa, há uma lágrima verde-amarela, de
amor a esta gente incansável que monta Musicais. São os sonhadores:
“Musicais são janelas para o imaginário de um povo, cuja qualidade é
viver no País das Maravilhas. Que a Ópera de Paris seja a Marquês de
Sapucaí e que o fantasma vague em nossas memórias, reafirmando o direito
ao sonho. Mascaradas, faces de papel em desfile, é chegada a hora.
Avante brincantes do mundo do carnaval musical, pois não há, no mundo
dos humanos, gente parecida contigo. Vai ter fim a infinita aflição, e o
mundo vai ver uma flor brotar, do impossível chão!”.
Feliz
é a São Clemente, que da grandeza deste gênero faz o seu carnaval. Feliz
meu samba, que sai pela vida em alegria incontida, nessa maravilha
aventura musical.
Revoada
de graças translúcidas parte em direção ao por do sol, no infinito. O
perfil de Carmem Miranda vai beijando Renato Russo, até desaparecer no
Black-out.
Cai
o Pano.
Fábio Ricardo
Pesquisa: Tânia Brandão e Marcos Roza