Choque de Ordem na folia
Sinopse:
São mais de 400 anos, mas o "corpitcho" parece de 18. A cidade maravilhosa continua assim, toda boa, toda linda, desfilando faceira no seu doce balanço Bossa Nova, se embolando no samba rasgado, ou rebolando no baile ao som do tamborzão. Um charme todo especial que se completa com um povo que, no improviso, faz milagres com as poucas oportunidades que a vida lhe dá.
Tá legal, tudo bem, beleza é fundamental. O DNA até que ajuda, mas e... quando aparecem as primeiras rugas? Alguma coisa está fora da ordem!
Nessa luta pela sobrevivência diária, a Lei do mais forte dita as normas da cidade e causa algumas imperfeições no "corpão-postal". Um puxadinho aqui, um jeitinho ali, uma infração acolá e pronto! Pequenos arranhões do cotidiano abrem grandes feridas nessa escultura feita cidade. E dá-se a confusão: o dia-a-dia vira bang-bang, faroeste encenado na paisagem natural mais belo do mundo!
E salve-se quem puder!
Mas chegou o Carnaval e com ele a hora do Rei Momo fazer as vezes de xerife da cidade. Chegados a uma monarquia que somos, reina a alegria na baderna consentida por quatro loucos dias que revelam a nossa capacidade de organização, de espírito coletivo.
Falando em coletivo, muita gente já pegou o bonde andando pelas ruas em festa, palco do duelo entre "caciqueanos" e "bafonences"! Era lá no bonde que se concentrava a bendita bagunça da era romântica do carnaval. Pelas ruas do Rio antigo, a chuva era de confete, que inundava a cidade da alegria. A ordem era burlar a própria ordem na festa que ele mesmo - o povo - se dá de presente. Festa para a qual, por ironia, passou a não mais ser convidado. E a gente bem que avisou...
Há 20 anos, o "Samba Sambava" na avenida. No carnaval de 1990, eram apresentados, no maior escracho, os sintomas da inversão de ordem que estava transformando o carnaval num espetáculo hollywoodiano, com direito a elenco milionário, cenários e figurinos que cada vez mais distanciavam as escolas da aurora do samba. A trilha musical desse "show", coitada, há muito combalida, hoje ensaia seu suspiro derradeiro. O que era samba, virou marcha! O que era marcha, virou frevo!! O que era escola, virou micareta!!! Harmonia, manda ver: "Bracinho prum lado, bracinho pro outro na hora do refrão!" E fica a pergunta: "Evolução" é isso?
Mas... "simbora", que ainda tem muita escola pra desfilar!
E quem já foi algoz, hoje é vítima. Os carnavalescos vaidosos de outrora têm que ser, além de exímios e criativos artistas plásticos, captadores de recursos. De pires na mão, batem de porta em porta à procura do patrocínio perfeito. Semideuses de ontem, com poder até sobre a escolha do samba, hoje são pobres mortais à espera do milagre da inspiração Divina que os façam tirar leite de pedra dos assuntos mais estranhos. Espremendo tudo, só sai um caldo fraco e a mistura é indigesta. Botaram maionese demais na salada de enredos.
E a ala da realeza não para de crescer. Chega enfim a grande rainha. Sem vínculo qualquer com a agremiação, faz um pouso espetacular de paraquedas em plena comunidade, que até ensaia uma festa. No ano seguinte, porém, outra celebridade do momento vem na surdina e mete a mão no cetro e coroa da "colega", não sem antes o tradicional jogo de cena da majestade destronada, com direito a baixaria na mídia e juras de amor eterno à nova escola que lhe der abrigo (e mais uma temporada de capas de revista). O posto passou a ser rifado como em quermesse de paróquia em época de São João. Quem pagar mais, leva!
Diante da desordem anunciada, o grande choque de ordem é planejado pela Sua Majestade, Rei Momo Primeiro e Único: está convocado o povão de volta à avenida. Lei baseada na observação de que não há rainha ou celebridade mais aplaudida hoje do que um homem do povo, que incendeia a Sapucaí em pleno exercício da função. É samba no pé, vassoura na mão! E fica tudo na maior limpeza... É o povo se vendo refletido no espelho da avenida, reverenciando e consagrando a si mesmo em meio a tantas estrelas.
Doidos varridos que somos por esta festa e por esta cidade, que apesar dos pesares exibe com orgulho o título de maravilhosa, vamos à luta! O grande choque da folia é nada mais nada menos que recolocar as coisas no seu devido lugar. Portanto, Aproveitem! Na quarta-feira tudo se acaba, mas enquanto isso, a ordem do Rei é cair na folia. Afinal, a gente se desordenando pode se reordenar, aplicando o mais eletrizante choque na avenida, o da alegria.
Vamos nessa? Vai ser chocante!
Carnavalesco: Mauro Quintaes
Texto: Gustavo Melo |