Samba no pé e mãos ao alto, isto é um assalto!
Considerações:
O
G.R.E.S. UNIDOS DO PORTO DA PEDRA, mantendo-se fiel aos temas comprometidos
com as questões sociais, decidiu conceber e apresentar no Carnaval/98,
um enredo até então evitado pela comunidade do samba. A essência do trabalho
contém mensagens de combate a toda modalidade de crimes, especialmente
quando praticados por cidadãos de “colarinho branco”, ou dotados de elevada
cultura e formação acadêmica, não podendo ser confundido, portanto, como
apologia à criminalidade, violenta ou não.
A fase de preparação e montagem plástica do enredo será antecedida de
breves considerações a respeito dos programas de reintegração social,
que estão sendo realizados pelos governos, com a finalidade de reabrir
as portas do mercado de trabalho honesto, para ex-presidiários, e recolocar
as estatísticas da criminalidade em níveis aceitáveis. Estes programas
devem ser elaborados com sensibilidade, razão e o maior de todos os sentimentos
- O AMOR.
Lamentavelmente, os programas em andamento ainda não apresentam resultados
práticos, porque, confrontando com os esforços, o jovem da atual geração
considera que para aumentar o seu “currículum marginal” e garantir o respeito
do grupo que freqüenta, precisa realizar atos de vandalismo. Com isso,
valores éticos e morais estão dando lugar a práticas condenáveis. É a
regra do valor e afirmação pessoal pela ótica e código deformados que
segue e, paralelamente a tudo isso, mergulha na marginalidade.
Inegavelmente, as Escolas de Samba exercem grande influência na formação
da opinião pública e devem aproveitar essa condição e conceber enredos
que despertem a atenção dos responsáveis sobre os descaminhos da sociedade.
Sem apontar saídas ou fórmulas milagrosas, menos ainda abrir questões
que possam levar a intermináveis discussões, quando o razoável é mostrar
que, bem mais que reflexões o momento exige providências, a nossa Escola
de Samba. pela seriedade e oportunidade do tema, pretende provar sambando,
representando e cantando, que o crime não compensa, e que o Homem deve
decidir, corretamente, sobre o uso dos seus pés e mãos. De preferência
para sambar, no caso dos pés; criar e acariciar, no caso das mãos. Nunca
ameaçar e subjugar.
Voltada para o sentido prático e construtivo do enredo, a PORTO DA PEDRA
usará o simbolismo das alegorias como uma forma de contribuição visual
aos programas de formação moral, e fará isso, largamente, para sensibilizar
os jovens ainda não alistados no crime, convidando-os para permanecerem
na margem boa da estrada.
O “Centro de Recuperação de São Gonçalo” não alimenta falsa ilusão, tendo
em vista a luta desigual que está sendo travada, neste momento, entre
o bem e o mal. Mas o esforço físico, mental, intelectual e principalmente
artístico, terá surtido efeito se, pelo menos, um jovem entender a mensagem
e refletir sobre a questão antes de iniciar qualquer caminhada.
Desenvolvimento:
Recentemente a sociedade tomou conhecimento de fatos que só eram possíveis
ocorrer na Idade Média, quando aos poderosos e desvairados era dado todo
o direito, até mesmo de julgar, torturar, humilhar e assassinar.
Naquele tempo a justiça podia ser exercida por déspotas. Ainda hoje isso
acontece, mas com o progresso e aperfeiçoamento isso será impossível e
a JUSTIÇA, cega, mas infalível, será exercida em toda a sua plenitude
e legitimidade, unicamente pelos representantes do verdadeiro Estado do
Direito.
E nunca mais será preciso que qualquer personagem da vida real, por força
das circunstâncias, repita os atos praticados pelos personagens do roteiro
do nosso desfile.
Primeira Galeria:
Abre-Alas
O Abre-Alas do Porto da Pedra será guardado à “sete chaves”. A sua concepção
plástica dará pleno sentido da necessidade de liberdade e independência
que todos nós precisamos, e até mesmo o TIGRE, orgulhoso animal, componente
da alegoria, sentirá o peso da conta da justiça, cobrada por belas domadoras,
“verdadeiras feras” que o acompanharão durante o desfile.
Segunda Galeria:
Hermes (Pelego do Crime)
Cada uma das “Divindades do Olimpo” recebia, logo ao nascer, uma tarefa.
Para Hermes, ficou a responsabilidade de proteger a cambada de ladrões.
Tentou mudar de funções, justiça seja feita, mas, como seu “pistolão”
não era daqueles que podia abrir qualquer porta, teve que se acostumar
com o trabalho. Procurou fazer o melhor e à medida que adquiria experiência,
aprontava das suas, tirando maior proveito como protetor e conselheiro
espiritual dos ladrões.
Entretanto, até para um “deus” essa profissão não deve ter sido das mais
fáceis, porque, de uns tempos para cá, pouco se ouviu comentar a seu respeito.
Provavelmente, não suportando as pressões. adquiriu uma pequena propriedade
e iniciou uma criação de gado, sendo essa a primeira coisa útil que conseguiu
fazer em toda a sua vida inútil, até cair no esquecimento, sem atingir
o principal objetivo: proteger e livrar os ladrões. O número de moradores
e os que estão aguardando ingresso nas cadeias públicas, prova que Hermes
fracassou completamente.
Terceira Galeria:
Casanova (Ladrão de Corações)
A desonestidade também pode ser praticada com uso da mentira, do cinismo,
de falsas promessas, abuso do poder econômico, tráfico de influências,
de tóxico e a desumana submissão da mulher pela fraqueza do coração. O
último delito deve ser inafiançável, porque fere a dignidade humana.
As façanhas vividas pelo irrecuperável conquistador Casanova, durante
os 73 anos em que esteve no plano terreno, causando inúmeros escândalos
eróticos, foram lembradas para o desfile do Porto da Pedra, no Carnaval/98,
por ocasião do segundo centenário de sua morte.
Obviamente não serão retratados os vergonhosos episódios, nem exigiremos
um julgamento em praça pública, porque isso compete a consciência universal,
maior interessada na preservação do pudor e da moral.
A nossa parte é representar contra qualquer modalidade de crime, até mesmo
o roubo da dignidade da mulher, o que de certa forma constitui um crime
hediondo.
Casanova. portanto. será execrado pelo “Tribunal de São Gonçalo”. agora
investido da responsabilidade de reabrir e questionar crimes famosos.
verdadeiros ou de ficção. para mostrar que a luta continua. Ainda existe
um posto de observação e cobrança. funcionando, gratuitamente, 25 horas
por dia na Rua João Silva, 84.
Casanova será condenado, receberá a matrícula 1998 e ficará confinado
na cela 171. junto com outros “casanovas de colarinhos brancos e punhos
rendados”.
As visitas serão permitidas nos dias de ensaios, no desfile oficial e
no Sábado das Campeãs.
Os pacotes serão examinados pela segurança do presídio. Todo cuidado é
pouco. O Homem não é de brincadeira.
Quarta Galeria:
Robin Hood (Benfeitor dos Pobres com o Chapéu Alheio)
Independentemente da veracidade dos fatos, as “ações condenáveis” praticadas
pelo mais romântico, popular e inofensivo dos salteadores - Robin Hood
- vem resistindo a passagem dos séculos, enriquecendo o pensamento dos
jovens sonhadores.
Verdade ou lenda, Robin Hood é imortal. Difícil encontrar um adolescente
que não tenha viajado, em sonhos, até a Idade Média e se colocado ao lado
daqueles camponeses, aos quais não era dado nem mesmo o direito de caçar
para comer, segundo regras da própria natureza.
Ainda que revestido do sentimento de humanidade, a sociedade não poderá
tolerar ações semelhantes e esse é o ensinamento contido na essência do
enredo, para evitar sempre, os excessos que geralmente acontecem, quando
alguém toma a justiça em suas mãos e dela faz uso, em nome da humanidade.
A vida e a obra de Robin Hood é amplamente conhecida e sem a preocupação
da cronologia dos fatos, a Porto da Pedra mostrará no desfile, justamente
para confrontar com qualquer apologia, que nem mesmo um bondoso salteador,
de origem nobre ou não, pode praticar atos em nome dos mais sublimes dos
sentimentos - AMOR E FIDELIDADE.
A História registra ao longo dos séculos, grandes e enternecedores momentos
vividos em nome do amor, mas podemos eleger, sem qualquer justificativa,
o último vivido por Robin Hood, seguramente, como um dos mais belos:
Ao término de suas andanças e aventuras, para aliviar o sofrimento dos
pobres feriu-se mortalmente e retornou à Sherwood para visitar a sua amada
Marian e pediu que seus restos fossem deixados nas terras do convento
onde Marian havia passado longe dele os últimos vinte anos, no ponto exato
onde caísse a flecha lançada com a força do seu último pensamento e suspiro.
Atitude própria de um cavalheiro, de extrema sensibilidade, que apesar
da nobreza dos atos, também será submetido ao Tribunal Popular de São
Gonçalo, séculos depois dos delitos cometidos.
Que o Júri se pronuncie.
Quinta Galeria:
“Rapto das Cebolinhas” (Plantação do Bem e do Mal)
Qualquer trabalho com pretensões de colaborar para o restabelecimento
dos bons costumes e respeito às instituições, ficará incompleto se não
se dirigir diretamente às crianças, dentro da sua linguagem e prisma do
colorido caleidoscópio do seu universo.
Um bom exemplo que pode levar a criança a descobrir, por si própria, a
existência do bem e do mal, está no conteúdo da peça “O RAPTO DAS CEBOLINHAS”.
A qualidade literária e o fundo moral da mensagem estão fora da questão,
porque qualquer obra assinada por Maria Clara Machado, passa sob o rigor
da crítica, por mais severa que seja.
A peça coloca a criança diante das ações das duas forças que se
digladiam disputando a posse do Homem. Ao cair do pano, a criança terá consciência
de que conviverá com elas, pelo resto da vida e deverá escolher o papel
que desempenhará na peça da vida real, da qual todos participamos como
ator, empresário ou assistente. Não há como escapar!
Outra finalidade elogiável da peça é mostrar a criança que, ao primeiro
sinal de anormalidade, deverá procurar imediatamente a autoridade policial,
e fazendo isso, ao invés de se deixar enganar por falsos competentes,
estará diminuindo o número de malandros impunes, instalando-os nas terras
férteis de São Gonçalo, apropriadas para uma boa plantação de hortaliças,
no bom sentido.
Sexta Galeria:
Ronald Biggs (Devedor da Justiça)
Examinando o “curriculum” de Ronald Biggs concluímos que a única identificação
que temos com ele é o declarado gosto pelos desfiles das Escolas de Samba.
Essa afirmação, feita publicamente, e o discreto comportamento mantido
nesses últimos anos, sem qualquer escândalo, quase no anonimato, contribuíram
decisivamente para a sua inclusão no histórico do enredo para o Carnaval/98.
Faremos isto, porque nenhum enredo que pretenda apontar os deslizes praticados
pelos Homens, com a finalidade de mostrar-lhes as desvantagens dos atos
para reintegrá-los socialmente. pode deixar de embarcar qualquer passageiro
na ESTAÇÃO SÃO GONÇALO”.
A sua participação no mais espetacular assalto ocorrido neste século,
pelos requintes do plano, cuidadosamente elaborado, para que tudo desse
certo e não fosse preciso usar de violência, demonstra que, desde aquela
época, como ainda hoje, R.B. possui unia personalidade serena, calculista,
como se estivesse analisando os fatos para encontrar a maneira mais pacífica
para solucionar as questões.
O assalto ao trem pagador, como ficou mundialmente conhecido, inspirando
contos, filmes, peças teatrais, etc, também faz parte da antologia dos
crimes famosos. Mesmo com o passar dos anos, não perdeu o “glamour” porque
toda a operação foi realizada como um jogo de xadrez (não confundir com
aqueles outros), onde os movimentos foram executados com absoluta concentração
e segurança, terminando, felizmente, sem perda de vidas, apesar da complexidade,
periculosidade e magnitude do delito que estarreceu o mundo.
O resto da história, já amplamente divulgada, até por ele mesmo, em várias
entrevistas radiofônicas, é notoriamente conhecida.
A questão é saber se, contabilizando todo o sacrifício, a perda da liberdade
e até mesmo a própria identidade, não estaria arriscando um patrimônio
excessivamente valioso para ser trocado por qualquer quantia em espécie,
mesmo que o retorno sinalizasse com 148 mil libras.
Talvez se pudesse voltar pelo Túnel do Tempo, R.B. preferisse ficar com
o único favor que a sorte lhe concedeu, em toda a sua vida: 500 libras.
Teria adquirido a sua casa própria e retomado o caminho do bem com a sua
família e hoje seria um dos que gritariam com a PORTO DA PEDRA: “Cuidado!
Tem boi na linha...”
O assunto ainda não terminou. Essa ferrovia é muito longa, mas. sinceramente,
acreditamos que R.B. agora na terceira idade. com maior experiência, consiga
o que mais deseja na vida: o direito de embarcar e desembarcar em qualquer
estação. E sabendo, como ele sabe, que ações delituosas mesmo sem características
violentas não devem ser praticadas, ainda que rendam verdadeiras fortunas
para cada ano de vida perdido, jamais aceitará realizar outra viagem no
“Trem dos Desesperados” e desembarcar na “Estação da Agonia”...
Sétima Galeria:
Pavilhão Central (Lavanderia Nacional)
Entramos agora na principal galeria. Muito escura, parece não ter fim...
Mas não vamos ficar parados. Vamos logo acendendo as luzes e denunciar
pelo serviço de alto-falante que as coisas estão fora de ritmo. Os pés
e as mãos estão sendo usados com outras finalidades.
Portanto, BASTA, BASTARDOS!
Chega de maracutaia, uso de colarinho branco, trapaça, conto do vigário,
roubo, latrocínio, troca de influência, armação no futebol e outros menos
notados no Código Penal.
Decididamente, a Galeria Principal tem que mostrar serviço e dar bom exemplo.
As chamadas “Otoridades Competentes” devem inaugurar cursos de orientação,
fazendo despertar no Homem o sentimento do amor, a paciência como virtude
para aceitar a pobreza, mas dar-lhe condição para progredir e estender
as mãos (não para o alto) formando uma corrente, que permita estabelecer
a paz como instituição, a felicidade como um bem inalienável, o respeito
ao próximo como característica da espécie humana.
Sem isso, brevemente, estaremos atravessando o “Túnel das Lamentações”.
Ainda há tempo para reagir!
Só falaremos agora na presença dos Senhores Jurados dos 9 Quesitos...
Mauro Quintaes
|