Vou festejar! Sou
Cacique, sou Mangueira!
Sinopse:
Tudo começou na África, num
tempo em que eu era ainda moço e minha tribo estava a mercê do perigo e
os sacerdotes cuidavam de expulsar com reza forte as vibrações de má
sorte que rondavam nossa morada. Lembro-me que os mensageiros da morte
vieram de longe, do outro lado das águas, talvez, não tinham sequer no
corpo o bronze da nossa pele, não tinham os lábios carnudos, eram
estranhos em tudo! E até mesmo esses detalhes que constroem a nossa
face, neles eram diferentes. Juro que inocente, pensei até em disfarce.
Conduzido pela dor, fui levado prisioneiro ao traiçoeiro Negreiro, o
reino da apatia. Lá, sujeito as doenças e a fome que habitavam aquele
porão sombrio, caí no mais denso e frio estado de melancolia. E era como
um açoite, a escuridão da noite, toda vez que ela chegava. E eu sofria
pesadelos, acordava assustado. Ainda na inocência, confundia a luz da
vidência com as trevas dos maus presságios. Ao desembarcar, os pés
feridos, descalços, vi quando o sal do oceano espalhou-se sobre o chão
molhado desenhando uma linda concha do mar e, ouvi a voz de Iemanjá me
falar: este "Mundo" é o teu "Novo" lar! Prepara-te, o teu futuro te
reserva coisas lindas, surpresas te virão ainda. Já em terra firme, nos
primeiros anos depois que saí da minha terra, suportei a mão pesada da
escravidão e as feridas da solidão. Certa vez, escondido pelo breu da
noite, resolvi caminhar na mata. Eu já andara bastante. Com a respiração
ofegante, parei pra descansar um instante.
E
o sono foi me apagando, a cabeça meio tonta, eu já nem me dava conta do
perigo de dormir longe da senzala, do povo da minha tribo, sem a
proteção de um abrigo. E ali sonhei meu destino. No sonho um guerreiro
caçador, o cacique dos índios, passeava naquelas terras e me viu sentado
sob uma tamarineira que ele havia plantado no seu tempo de menino.
Sentou-se ali do meu lado, desenhou com seu arco, no chão, uma pequena
flecha e, com amabilidade, perguntou a minha idade, quis saber em que
cidade eu havia nascido. E eu, me sentindo à vontade lhe falei dos
deuses iorubás, da minha terra natal, do cordão umbilical, do rio da
minha aldeia. E ele, com calma, me falou do poder das folhas e das
raízes que transformam em cicatrizes ferimentos e mordeduras de aranhas
e de serpentes; dos banhos quentes de algumas ervas e sementes, que
curam até os doentes de alma. Ao voltar pra senzala era como se meu
coração tivesse fala.
O
Rio de Janeiro era o meu novo terreiro e nas batucadas, nas festas, na
alegria das ruas, nas brincadeiras do povão, encontrei meu destino e
enganei a solidão. Quando o Entrudo chegava uma maravilha de ruídos
invadia as ruas, um barulho encantador que contrastava com a sujeira
reinante. Divertidas batalhas com limão de cera, água e farinha branca
atiradas entre os participantes aconteciam a todo instante. Zé-Pereira,
bumbos, rostos e bumbuns de negros azucrinando nas praças e no passeio
público, zombando, se divertindo, enquanto a viola chorava e espinoteava
espantando a tristeza. E tudo era instrumento, flauta, violões,
pandeiros, latas, gaitas, frigideiras de ferro, caixotes e trombetas.
Instrumentos sem nome, inventados subitamente no delírio da
improvisação, do ímpeto musical, na força do sentimento. Já que batucar
na cozinha Sinhá não deixava, o nosso canto ecoava nas senzalas e
invadia as ruas. Aliás, na rua do Ouvidor, na rua Direita ou no Largo de
São Francisco tudo era canto e os sons sacudiam e movimentavam as
vestimentas de cores vivas, ardentes, dançando e tateando os corpos que
exalavam o doce perfume da alegria.
A
elite fazia biquinho e implicava, chamava nossa festa de selvagem e
brutal e que o verdadeiro carnaval estava nos salões da nobreza de Paris
e Veneza. Discriminada e com as autoridades policias no encalço, a turma
dos descalços e descamisados tratou de arrumar um jeitinho para
continuar festejando. Com um olho no padre e outro na missa lutamos
dançando, dançamos rezando e rezamos cantando. As festas, celebrações e
procissões dos brancos, agora, serviam como máscaras e disfarces. Por
trás delas festejávamos nossas entidades sagradas e batucávamos até o
sol raiar. Organizados em Cordões carnavalescos, cantadores e
dançarinos, palhaços, a morte, os diabos, os reis, as rainhas, as
baianas, os morcegos e os índios também entraram na dança e colocaram a
polícia pra dançar. No noturno da Praça Onze, ali mesmo na nossa
"Pequena África", os desfiles do Pastoril e dos Maracatus em louvor à
Ciata D'Oxum, a tia-mãe-baiana dos festejos, se tornaram a sensação e os
luxuosos Ranchos cantadores, dominados pelos negros e castanhos, rompiam
a massa colorida em grande animação. Para matar a sede dos cantadores e
dos berradores, os refrescos de coco, os gelados de abacaxi e limão.
Para a fome, bolos de fubá, pé de moleque, alcaçar, tapioca, manauê e
feijoada no caldeirão. Mascarada, a elite branca se esbaldava no luxo
dos salões, nos desfiles dos corsos e das grandes Sociedades. O povo
preto e pobre, barrado no baile burguês, continuou dono das ruas e
vielas como legítimos senhores da folia. Música, fanfarra, préstito,
maxixe e, finalmente, de semba se fez samba. Abençoadas por Nossa
Senhora do Rosário, na Festa da Penha, as negras suspendiam as saias
rodadas e dançavam, nos requebros das ancas, no arranco das umbigadas.
Enquanto os senhores rezavam na parte alta das escadarias, na parte de
baixo, a sensualidade era religiosa, o ritmo dos batuques era sacerdotal
e feiticeiro. Ali desaguavam os cantos e as melodias de todo o povo
brasileiro e os compositores da primeiríssima geração de sambistas,
testavam a popularidade do seu cancioneiro.
O
tempo passou. A cidade se transformou em uma selva de pedra onde a
"Onça" reinava absoluta e era a principal atração. "Vejam todos
presentes, olha a empolgação, este é o Bafo da Onça que eu trago
guardado no meu coração". Até que um dia, um "Cacique" bamba entrou na
folia e dividiu a tribo do samba sem vacilação. "Foi lá no fundo do seu
quintal que o samba pegou moral e agitou a massa, e o povo voltou a
cantar e sorrir, caciqueando aqui e ali, abrindo o coração pro amor". De
repente as ruas esvaziaram-se! Será que a "Onça" vacilou, foi beber água
de cheiro e se afogou?! Até mesmo o bravo "Cacique" parecia cansado das
batalhas de confetes e desanimou! Para onde teria ido a alegria? Onde
estaria a espontaneidade que transformava cem pessoas saídas de um
bairro em quinhentas, em mil, sem ninguém se conhecer? Mas o samba é
eterno, não tenho medo de responder! Ele até pode agonizar, mas jamais
irá morrer! A "Onça" marcou bobeira e não mais saiu da toca, mas o
"Cacique", malandro, mudou de oca, foi fazer morada à sombra de uma
tamarineira e ali no subúrbio da Leopoldina, abençoado por Oxossi, o
pagode ecoou vindo do "Fundo do Quintal" e embalado por banjos,
repiques, tantãs e pandeiros conquistou o Brasil inteiro. "Batam palmas,
gritem, soltem a voz. Pra manter o pique só depende de nós"! O carnaval,
a partir daí, não terminava mais na quarta-feira de cinzas. Quase sem
querer, ele se fragmentou em diversas festas nos lares das famílias
simples, em animadas rodas de samba, em batuques sobre mesas de bares,
confirmando que a tribo do samba ainda queria apito, sem necessariamente
o pau ter que comer! Isso tudo já faz muito tempo.
Hoje
eu chego com o vento e volto aos pés da velha tamarineira, sento-me
novamente ao lado do guerreiro e de Oxossi em saudação ao meio século de
história do cacique de Ramos. Nós somos as raízes e o Cacique é o tronco
desta árvore que deu frutos como Jorge Aragão, Almir Guineto, Arlindo
Cruz, Dicró, Mauro Diniz, Zeca Pagodinho, Luis Carlos da Vila e Neguinho
da Beija-Flor, entre outros nomes, além da dindinha Beth Carvalho um
bendito fruto feminino entre tantos homens.
Salve
a tribo dos bambas; esse "Doce Refúgio" de pagodeiros e malandros no bom
sentido da palavra. A tribo que bate tambor e faz ecoar o surdo de
primeira pra saudar a sagrada tamarineira e confirmar que o bom samba
também mora em Mangueira. Afina, "onde eu cheguei, nem um mortal chegou,
modesta parte nessa arte, Deus me consagrou e o meu canto ecoou por todo
universo, até em Marte o meu samba fez sucesso!" Por tudo isso vou
festejar, pois sou Cacique, sou Mangueira!
Texto: Sérgio Cabral,
Beth Carvalho e Bira Presidente.
Carnavalesco: Cid Carvalho |