DOM OBÁ II -
REI DOS ESFARRAPADOS, PRÍNCIPE DO POVO
Introdução
A Estação Primeira de Mangueira celebra os
500 anos do Brasil exaltando a saga da raça negra, num tributo àqueles
que, oprimidos e vilipendiados, cultuaram a liberdade como um bem
inerente à condição humana.
Mais que o mero culto à liberdade, ressalta a verde-e-rosa a luta
cotidiana pela igualdade, temperada no sofrimento de sucessivas gerações
de negros que acabaram por constituir a mais importante das matrizes
étnicas do que hoje se conhece por povo brasileiro.
Inovadora,
a Mangueira não foi buscar inspiração entre os heróis da raça. Apesar
da sua profunda admiração e respeito pelos mártires da Abolição, que
foram milhares, quem sabe milhões, de Zumbi dos Palmares aos guerreiros
de todos os quilombos, preferiu a Estação Primeira beber na fonte
da gente simples e urbana do povo do Rio de Janeiro da segunda metade
do século XIX.
É
desse Rio dos desvalidos, da ralé dos cortiços, que emerge a figura
majestórica de Dom Obá II d´África, o rei dos esfarrapados, príncipe
do povo. Baiano de Lençóis, voluntário da Pátria na guerra do Paraguai,
de nascimento Cândido da Fonseca Galvão, trazia nas veias o sangue
azul da realeza iorubá de seus ancestrais africanos de Oyó.
Senhoras e senhores, nobres e plebeus. O quilombo da Mangueira do
qual se originam sua altivez e seu acendrado amor à liberdade, entra
na avenida com garra e com alegria, com samba no pé e, este ano, com
um redobrado orgulho da sua gente e da sua raça. E pede passagem.
Oswaldo Martins
Sinopse do Enredo
Salve, mãe África! De Ogum, de Oxossi e de
todos os orixás! Axé, mãe África da nação ioruba, de um lugar chamado
Oyó, berço do primeiro Obá! Obá, rei do seu povo, em Oyó, como em
qualquer lugar. Rei a vida inteira, a que passou e a que virá, onde
haja luta para lutar.
Filho
de rei, rei também é. Rei até na Bahia, em Lençóis dos Diamantes,
onde nasceu Cândido da Fonseca Galvão, o Obá II, herdeiro de sangue
do legado secular. Lençóis de muita riqueza, a "Corte do Sertão"
de Iaiá Douradinha, coberta de jóias, de muita ostentação. De onde
Galvão saiu alferes, com seu batalhão de zuavos, todos negros, todos
belos, para defender a amada pátria na guerra do Paraguai.
Voluntários
da Pátria, heróis de Tuiuti e de mil e tantas batalhas no chaco, na
ponta da espada, no fio do sabre que Chico diabo cravou no peito do
chefe inimigo.
Em
tempo de paz para todo soldado, resta a glória que fica retida em
sua memória e, na posteridade, uns parcos registros nos livros de
história.
Alferes
Galvão, herói nacional, tua luta não pára. Ferido, esquecido entre
teus pares não serás um pária. O sangue iorubá que vem de Oyó ferve
nas veias e dita tua sina. Um rei é um rei, na pompa do trono ou na
imunda esquina.
E, no Rio dos condes, viscondes do casario senhorial, da pompa sem
conta da corte imperial, a vida retoma seu curso normal. Esse mesmo
rio de fausto e beleza é do outro lado do Rio do Mangue, da lida de
tantos, de tanta pobreza.
Esse
lado do rio, muito tempo depois, foi Heitor dos Prazeres quem um nome
botou: África Pequena. África pequena era tudo, menos serena. E mesmo
o "serena" só tinha sentido se comparada à verdadeira, d´além
mar, lá onde Abiodun fundou o reino de Obá.
Gamboa,
Saúde, Santo Cristo, Santana... era esse o território dos desvalidos,
dos deserdados da sorte, onde o alferes Galvão fincou sua bandeira.
Altivo, destemido, ousado, era o rei que faltava, o líder de um povo
que nada mais esperava.
Dom
Obá II d´África, o rei dos esfarrapados, príncipe do povo, imperava
nas ruas como se fossem suas e desfilava seu porte majestoso de fraque
e cartola, pince-nez de ouro, guarda-chuva e bengala.
Vivendo
em meio a tanta desgraça só mesmo a cachaça o fazia sonhar. "Me
respeitem!", bradava e a todos lembrava a Oyó de ancestrais.
Falava de um trono talhado em ouro que o brilho do Sol fazia cegar.
Contava de um rei que ao pai pertenceu, onde o preto era livre e a
vida do povo uma bênção dos céus.
"Ó,
África Pequena, por que não imitas o éden de Oyó"? Nos delírios
de Obá, o rei da ralé, o rio "de cá" carecia festar. Do
cortiço gigante, o Cabeça de Porco, Dom Obá pretendia um dia tirar
os dois mil habitantes com tralha, com tudo e ali instalar um trono
dourado. O rei da gentalha, dos loucos e dos desgraçados, dos famintos
e dos açoitados sonhava criar um reino opulento onde todos, libertos,
pudessem dançar.
Em
seus desvarios, Obá só pensava num jeito de ter, em meio a pobreza
e de tanta tristeza, um reino real, com liteira e finesse, coroa e
arauto e todo aparato que um rei deve ter.
Real
era a vida. E quando o porre passava, tudo voltava ao seu lugar. As
tias baianas com seus tabuleiros vendiam quitutes, bolinhos, docinhos,
manjares do céu. Ciata de Oxum, Carmem da Praça Onze, Bebiana das
Botas e Josefa da Lapa, que subiu na vida quando abriu um bordel.
No
rio "de cá", a lama e o lixo. Ruelas com pobres, com porcos,
cachorros, galinhas, fedor. No rio "de lá", a pompa e o
luxo. Na corte, os nobres faziam da vida um eterno esplendor. Nas
festas do Paço, nas ruas do Centro, em salões de palácios com leque
e rapé, sinhá desfilava a moda importada e nem reparava que havia
ralé.
Mas
havia Obá.
Grandalhão,
mas elegante, finório, falante, semana sim, semana não ele estava
lá. Na sala de recepção, onde Dom Pedro recebia com enorme fidalguia
os plebeus de seu império. Herói de guerra e brasileiro, Obá porém
preferia usar a pompa que escolhia, de dignatário estrangeiro. Rei
d´África, altivo, queixo erguido, peito inflado, beijava a mão do
Imperador sem jamais perder o ar de enfado.
O
populacho exultava quando Obá exibia seus dotes superiores. E a maioria,
naquele reduto, o seu rei remunerava com uma espécie de tributo. O
dinheiro dos seus súditos tinha sempre a mesma destinação: botar artigos
nos jornais, que Obá escrevia, deitando falação. Nada escapava `Pa
sua pena delirante. E ai de quem o amolasse! Seu alvo predileto era
a elite dominante. Elite decadente logo se veria. A princesa Isabel,
num gesto feliz, mudou a história e libertou o país. Abolição! Liberdade!
Tardia verdade...
O
povo sofrido da África Pequena saiu pelas ruas e se pôs a cantar.
Em todo o Rio, mais de cá do que de lá, só havia festa no reino de
Obá. A massa cismou de aclamar a princesa e à Quinta rumou sem saber
da surpresa. Ao lado da Quinta há um morro, há muito habitado por
gente simples e tão pobre, que só tem o Sol que a todos cobre, mas
que sabe sambar.
Obá
foi quem viu e jura por Deus que a cena é real, visão verdadeira.
Isabel, a princesa, de porta-bandeira sambando animada no alto do
morro chamado Mangueira. E quando saiu, suada, aclamada, beijou um
menino. Um menino franzino de nome Saturnino.
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