Dona Ivone Lara: O
enredo do meu samba
Sinopse:
Serra...
dos meus sonhos dourados. É de lá que desce o cortejo verde e branco
a ondular pela Avenida ao som da mais vibrante sinfonia percussiva.
Marcação que evoca a ancestralidade de uma dinastia formada por
nobres de alta linhagem africana. Um reino construído em muitas
formas de arte. Entre elas, o jongo, o samba e o carnaval.
São cânticos, danças e vozes que se levantam altivas num
ritual de consagração no grande terreiro da Avenida, onde a cada
desfile são renovados os laços de fé e devoção dos seus súditos.
É o Império na Sapucaí, que exalta sua própria essência,
personificada por Dona Ivone Lara. Enredo do Meu Samba, que nasce de
uma história marcada por melodias, amores e sonhos trançados nas
teias do tempo, percorrendo as trilhas do que se chama destino.
Dois caminhos, uma só paixão: a
música!
“Dona
Ivone é um sonho meu, um sonho seu, nosso melhor sonho,
pois ela é real!” – Zélia Duncan
Em casa, a
pequena Yvonne da Silva Lara ainda não era Dona, nem seu nome era
grafado “Ivone”, como ficaria conhecida tempos depois. Mas já trazia
na veia o sangue musical herdado da mãe, pastora do rancho Flor do
Abacate, e do pai, exímio violão de sete cordas e integrante do
bloco Os Africanos. Uma família de muitos talentos. Um dos seus
primos era ninguém menos que Antônio dos Santos. Não conhece? Mas se
o chamarmos de Mestre Fuleiro, você há de lembrar...
E foi com ele que surgiu uma canção soprada das asas de “Tiê”,
pássaro que abriu os caminhos da menina para compor. A evocação do
“Tiê” vinha acompanhada da sonora repreensão “Oia lá, oxá”, que
tanto ouvia da avó. E assim, ao beber na rica fonte que minava na
própria casa, nasceu a primeira obra, misto de música infantil com
levada de terreiro.
Enquanto a casa pulsava musicalidade, o colégio interno em
que estudava na Tijuca oferecia à jovem Yvonne a formação teórica
por meio das aulas de canto orfeônico, coro formado por vozes
afinadas. Entre as alunas, estava a contralto Yvonne, que não
demorou muito a chamar a atenção da professora e maestrina dona
Lucília, mulher de ninguém menos que Heitor Villa-Lobos. E foi sob a
regência do Maestro que a jovem estudante se destacou em um encontro
de corais, evento que reuniu orfeões de vários colégios do Rio de
Janeiro. E que a levou a se apresentar no Orfeão dos Apiacás, na
Rádio Tupi.
São episódios que marcam o reconhecimento ao talento da
menina que despontava para a formação em teoria musical. A vocação
cultivada em casa era lapidada na escola. A união do erudito com o
popular, da formação com a intuição, seria fundamental para forjar o
traço melódico da futura cantora e compositora.
A vida foi em
frente...
“Quem
é mesmo da Serrinha / Trata o samba com respeito / Traz
as cores verde e branco / Do lado esquerdo do peito” –
Carlinhos Bem-Te-Vi
Enfermeira,
dona de casa, mãe e esposa exemplar, Yvonne Lara tentava conciliar
mundos às vezes excludentes: a vida doméstica e profissional com as
inspirações melódicas que teimavam em acompanhá-la. E o samba...
...ah, o samba!! Esse danado que mexe o corpo da gente,
raiz do carnaval que em 1947 viu nascer um novo capítulo com a
criação de um majestoso Império de bambas. Mas compor samba não era
coisa de mulher. E ao lado do “Apito de Ouro”, nosso Mestre Fuleiro,
primo e diretor de harmonia da nova escola, surgiram obras
apreciadas tanto pela alta linhagem imperial como pelos sambistas
das demais escolas. Dona Yvonne já era respeitada, mesmo sem assinar
muitas de suas composições. Foi por isso que em 1961, viveu um
momento inesquecível ao desfilar como crooner da ala de
compositores, embora dela não fizesse parte oficialmente.
Até que veio o carnaval do Quarto Centenário do Rio de
Janeiro. Era um momento especial na história da cidade. As escolas
deveriam apresentar temas cuidadosamente escolhidos para celebrar a
data. E assim surgiu Os Cinco Bailes da História do Rio. Algo
acontecia na Corte Imperial, prenúncio de uma revolução. Ao lado do
mestre Silas de Oliveira e Bacalhau, Yvonne assinou o samba e entrou
para a história. Mais do que isso: conquistou a quadra verde e
branca, encantou pastoras, emocionou os componentes. E sagrou-se a
primeira mulher a vencer uma disputa de samba-enredo na história do
carnaval carioca.Na Avenida, o Império bailou ao som de uma melodia
cheia de nuances e lará-iás. Surgia com brilho raro uma das
obras-primas do gênero samba-enredo. E a estrela da cantora e
compositora iluminou muito mais que a própria corte da qual já era
rainha.
Nos Palcos da Vida
“Dona
Ivone respira música. Se ela estiver num canto,
paradinha, pensando, pode saber que tem música aí”.
Bruno Castro – compositor e parceiro
A
repercussão da vitória de 1965 foi grande. Porém conciliar trabalho,
família e carreira não era nada fácil. Mas com jeitinho e jogo de
cintura, Yvonne foi se transformando em Dona Ivone Lara. A pequena
mudança na grafia era uma forma de simplificar o nome para o grande
público. O “Dona” incorporado ao nome era uma pista do que viria a
ser e de certa forma já era: Diva. Senhora do Samba. Dona da
Melodia. Dama. Rainha.
Foi nos palcos da vida que Dona Ivone Lara ergueu os
braços ao estrelato. A postura diante do público, o cuidado com a
aparência e o respeito à plateia foram lições que ela aprendeu com
as cantoras do rádio, que tanto admirava. Sob os refletores, ela
reinava. Dançando jongo e cantando seus sambas, o público ia ao
delírio.
São tantas noites inesquecíveis, como as do Show Opinião,
que sacudia as segundas-feiras da Zona Sul carioca! Foi ali que a
cantora e compositora se juntou aos bambas da Música Popular
Brasileira. Naquele palco, estava em casa. E em ótima companhia.
Liberdade. Sonho. Amor. Às vezes tristeza, melancolia.
Mas, sobretudo, verdade. Temas que Dona Ivone Lara canta até hoje
nos palcos mundo afora, celebrando os sentimentos e os sentidos de
nascer, crescer e amar. Amar à arte como a si mesmo. Traduzir em
canção um “Sonho Meu”, um “Alvorecer” que leva as dores da noite e
traz a esperança de um novo dia. Revelar o que tem dentro de si e
compartilhar emoções com o público que a abraça em forma de aplauso.
E a baiana se
glorificou...
“Lavando a nossa alma / Com a mais fina inspiração / Meu
samba te pega na palma / E beija a tua mão”
Nei
Lopes
Mas a
presença de Dona Ivone também está marcada no maior palco do artista
popular. Esse lugar é a Avenida. Templo de tantos sonhos de
carnaval...
As raízes negras que se ramificaram pelas diversas escolas
de samba no Brasil têm na ala de baianas um relicário sagrado que
remete aos laços reais com o matriarcado ancestral. Para Dona Ivone
Lara, a ala da Cidade Alta – as baianas imperiais – é o fundamento
mais vivo de uma escola marcada pela resistência, pela luta, pelo
trabalho coletivo e pela arte.
Afinal, a ala era formada pelas mulheres dos estivadores,
que não poupavam recursos para que suas damas saíssem muito bem
vestidas no carnaval. Até hoje elas mantêm o legado das tradições de
um Império sonhado com tanta luta e que transforma a fantasia na
mais bela realidade a cada desfile.
E foi como destaque da ala da Cidade Alta que Dona Ivone
tantas vezes pisou a Avenida... Usou os mais diversos tons de verde
e branco. Vestiu-se também de ouro. Foi matriarca absoluta na Igreja
do Bonfim, em 1983, como a Mãe Baiana Mãe de toda a nação imperial.
E o sorriso negro que tantas vezes iluminou a escola na
celebração maior da arte do carnaval vem novamente cruzar a
passarela. Desta vez, Dona Ivone Lara é a inspiração e a razão pela
qual canta a nossa gente.
No Enredo do Meu Samba, a corte de tantas glórias no reino
das escolas de samba veste o manto sagrado bordado em fantasia para
louvar a sua rainha. A escola que viu nascer, hoje abre alas para
exaltá-la como a grande dama, pioneira, artista, cantora, e,
sobretudo, imperiana.
É a nossa verdade e nossa raiz, a devoção pela arte e pela
beleza que nos une nesse maravilhoso Império de sonhos.
Salve Dona Ivone
Lara!!
Mauro Quintaes (Carnavalesco) |