João das ruas do Rio
Eu amo a rua. Este sentimento de natureza toda íntima não seria revelado por mim, se não julgasse que este amor absoluto e exagerado é partilhado por todos nós.
A rua, espaço por onde se anda e passeia. Ora, a rua é mais que isso, é um fator de vida das cidades. A rua tem alma!
Não há nada mais enternecedor que o princípio de uma rua.
No início capim, um braço a ligar duas artérias. Um dia cercam a sua beira, um lote de terreno, surgem os alicerces de uma casa. Depois outra e outra. Três ou quatro habitantes proclamam sua salubridade ou sossego.
O importante é que a rua é a causa fundamental da diversidade de tipos humanos. A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho, começa a rua, por isso ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo.
A rua da Misericórdia foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhores em redes, os índios batidos, negros presos a ferros. O primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, um ai! Dela brotou a cidade, no antigo largo do Paço. Ela continuou pelos séculos...
Cada rua tem um estoque especial de expressões, ideias e gostos. As conversas variam, o amor varia, até o namoro é absolutamente diverso. Em Botafogo, à sombra das árvores do parque ou no grande portão, Julieta espera Romeu, elegante e solitária. Em Haddock Lobo, Julieta garruleia em bando pela calçada, e nas casas humildes da Cidade Nova Julieta, que trabalhou todo o dia, pensando nessa hora fugaz, pende à janela seu busto formoso.
O que se vê pelas ruas do Rio do João
Do cais, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho dos navios, das fortalezas. À beira desse cais, saveiros enormes esperavam a mercadoria, e em cima, formando um círculo ininterrupto, homens de braços nus saíam a correr dentro da casa, atiravam o saco no saveiro, davam a volta na disparada, tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos como uma correia de uma grande máquina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos, não os podia contar.
Pelos boulevares que vão dar no cais, a vida da cidade vibrava num rumor de apoteose, naquele trecho do mercado. Os vendedores ambulantes entram ali como por um terreno novo a conquistar.
O ratoeiro compra ratos. É um negociante, o entreposto entre as ratoeiras da cidade e a Diretoria de Saúde.Vai até o subúrbio tocando uma corneta. O vendedor de doces arria a caixa e entrega o braço a um moleque. Aquele pequeno é um marcador, faz tatuagens com três agulhas e um pote de tinta. Passa o vendedor de orações, colecionei essas súplicas bizarras. Há orações para santos que nem o papa conhece: S. Gurmim, boa para dor nos calos, e São Puiúna, infalível nas nevralgias. E até mesmo oração para o mar sagrado:
Mar sagrado, eu te venho salvar, a tua água te venho pedir para fortuna por Deus para minha casa levar; para que me dê ouro para guardar e prata para gastar, cobre para dar aos pobres..
Na esquina do teatro S. Pedro Arcanjo, um italiano vende livros e jornais. A História da princesa Magalona, Carlos Magno e Testamento dos bichos são os mais vendidos.
Não há cidade no mundo onde haja mais gente célebre que a cidade de S. Sebastião. Vamos ver os pintores, não os Vitor Meirelles e Castagnettos , mas os pintores de rua, heróis da tabuleta , artistas da arte prática. Vamos a pequenas amostras - Os macacos trepados em pipas de parati , mulheres com molhos de trigo nas mãos, apainelando padarias, paisagens que se repetem com a visão de quem pinta: há o Pão de Açúcar redondo como uma bola, no Estácio, em feitio de valise, no Andaraí, o mesmo Pão comprido e fino em São Cristóvão. Paisagens de batalhas, pôr do sol e mares revoltos. Paisagens de botequins - tabuletas. Foi um poeta que considerou as tabuletas os brasões da rua.
A origem dos títulos é sempre curiosa. Na rua Senhor dos Passos, "Depósito de aves de penas" e na rua Sete "grande sortimento de frutas verdes e secas". Na rua da Constituição, uma casa de bilhetes intitulada "Casa Idealista", porque quem compra bilhetes vive no mundo da lua, e há uma casa de coroas, "O Lírio Impermeável" e outra, "Vulcão das 49 Flores" .
Apesar dos gramofones e da intensa proliferação dos pianos nos hotéis, nos botequins, nas lojas de calçados, os músicos ambulantes foram aparecendo novamente nos cafés, tascas, baiúcas, e de novo pelas ruas os realejos, os violinos, as gaitas recomeçaram seu triunfo e lobriguei outro dia ainda um bicho lendário por mim julgado tão desaparecido quanto o megatério : o homem dos sete instrumentos.
Esta cidade é essencialmente musical; era impossível passar sem os músicos ambulantes. E dança-se muito também. Na rua Frei Caneca, na de Santana, em São Clemente e S. Cristóvão tem reisados, contei numa noite mais de 40. Um dos grupos carnavalescos chama-se Rei de Ouros.
Tu tu tu, quem bate à porta Menina, vai ver quem é É o triunfo Rei de Ouros
Com sua pastora ao pé
Em plena rua do Ouvidor, não se podia andar. Era provável que do largo de São Francisco até a rua Direita dançassem vinte cordões carnavalescos, rufassem 200 tambores, zabumbassem 100 zabumbas, gritassem 50 mil pessoas. Era a loucura, o pandemônio do barulho e da sandice. Os cordões são os núcleos irredutíveis da folia carioca, brotam com um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.
Hoje ainda nas ruas do Rio do João
O tempo passou, surgiram novas ruas cheias de arranha-céus, novos bairros, novos transportes, mas a rua ferve de gente e... de ambulantes.
São pipoqueiros, tapioqueiros, vendedores de acarajé, milho verde, olha a pamonha! O vassoureiro equilibra todo tipo de vassouras e espanadores, pastéis, churros, empadas, a caminhonete vende cachorro-quente com as coberturas mais inusitadas de petit-pois e maionese, panos de chão clareados, burro-sem-rabo com pilhas de sacos de papel e jornal, e latinha de cerveja amassada, nas esquinas flores e plantas para todos os gostos, óculos de grau se misturam a colares de retalhos, bijuterias e relógios - só fica sem saber das horas quem quiser! Carregadores para celulares, protetores para o sol, balas de todo tipo e as frutas da estação, em oferta especial.
Os flanelinhas guardam as vagas, o garoto insiste em lavar os vidros, um cantor vende seus próprios CDs, e nesse circo armado nas ruas, os malabaristas fazem suas demonstrações de equilíbrio e agilidade, entre um sinal e outro.
Amo as ruas do Rio, tal como João do Rio, do Rio de Janeiro, a casa de todos nós!!!!
Rosa Magalhães Junho 2009
Bibliografia consultada:
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João do Rio. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 1910.
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Magalhães Júnior, Raymundo. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
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João do Rio. Os melhores contos de João do Rio. Seleção de Helena Parente Cunha. S. Paulo: Global, 1990.
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