Delírios e
devaneios de sua alteza real Dona Maria vai com as outras
Justificativa:
O Grêmio Recreativo Escola de Samba Gato de Bonsucesso se propõe a homenagear os 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil, retratando na avenida, a ótica com que Dona Maria I, 26ª rainha de Portugal, interpretou o mundo e os fatos de sua época, do momento em que começou a se desestabilizar mentalmente até o fim de seus dias no Convento do Carmo, incluindo nesse meio tempo, a turbulenta transferência da Corte para a colônia.
Após um progressivo desequilíbrio mental, desencadeado pela depressão causada com a morte de seu esposo, o rei Dom Pedro III, de seus filhos Dom José e Dona Maria Ana, de um genro e um neto recém-nascido, e mais o medo de ser decapitada como os reis de França, a rainha deixou de ser conhecida como “A Piedosa” para ser retratada como “A Louca”. Altamente religiosa, melancólica, e com o espírito envolto nas trevas da demência, passou a ter visões alucinantes, transformando essas visões em sua realidade.
Apesar de toda atmosfera embasada em um cenário descrito pela historiografia, o enredo prender-se-á apenas às alucinações do universo particular da intrigante personagem, com uma proposta lúdica, divertida e debochada, e por isso não nos interessará nessa narrativa, as obras realizadas em seu governo ou muito menos as razões políticas e econômicas que levaram Dom João, seu filho e príncipe regente, a optar pela transferência da corte de Portugal para o Brasil; mas sim a visão particular de um dos personagens mais misteriosos desses episódios.
O enredo pode ainda ser considerado uma crítica sutil ao etnocentrismo universal do qual o Brasil é vítima, e algoz, desde o seu descobrimento até os dias contemporâneos, como por exemplo, o relato do poeta inglês Richard Flecknoe em 1649, que alegou ter avistado em terras brasileiras preguiças com escamas de rinoceronte e tigres andando com onças e leopardos, citado na obra
Visões do Rio de Janeiro Colonial, de Jean Marcel Carvalho França.
“Delírios e devaneios de sua alteza real Dona Maria vai com as outras” é uma grande comédia sobre as loucuras de uma rainha em cima de suas próprias visões etnocêntricas, quando o GRES Gato de Bonsucesso leva às luzes da avenida as alucinações da Rainha de Portugal, com a poesia de seu carnaval.
Sinopse:
Ai Jesus! Ai Jesus!!!
Ai Minha Nossa Senhora, que dor é esta que está a me consumir? Já não consigo mais estar a mesa dos banquetes... Não ouço mais os violinos nas valsas dos salões... Não sinto os perfumes da fidalquia!
Pobre pai que virou carvão nas mãos do demônio, por conta dos crimes de Pombal contra santos jesuítas. Pobre rei, senhor meu marido! Pobre Dom José, Príncipe da Beira, meu adorado filho! Deixaram-me todos aos prantos, em seus leitos de morte! Dizem os duques e marqueses pelos corredores do palácio: “É a maldição da Casa de Bragança!”
E se foram também minha adorada filha Dona Maria Ana, meu pequeno neto e meu genro... Comentam os condes e viscondes, que desde que um dos Bragança chutou o traseiro de um pobre frade esmoler, é assim – estão todos a morrer, um atrás do outro! E cá fico eu a sofrer... Ai Jesus! Ai Jesus!!!
O mundo está de pernas para o ar! Notícias terríveis chegam de França... Os reis perderam a cabeça na afiada lâmina da
guilhotina!!! Deus meu, e se estoura uma revolução também em Lisboa? O diabo há de me querer para completar sua Coleção de Braganças!
Anjos inquisidores pesam minha alma em balanças de ouro todas as noites quando estou a dormir... Querem saber se ainda sou “a piedosa” ou se me tornei “a pecadora”! Ai Jesus! Ai Jesus!. Mas sou boa, sou temente a Deus! Mando rezar missas, novenas; mando fazer procissões, uma para cada dia do ano! Dou todo ouro que tenho para Deus, porque pelo ouro não serei engolida! Minha alma, não! Hei de quebrar esta maldição!
Santos e anjos podem estar por todo lado, a se disfarçar de mendigos para me testar... Lavarei os pés de todos com águas perfumadas em bandejas de prata! Santas criaturas que podem até ser Jesus disfarçado! Criaturas santificadas!
Agora João inventou de fugir para o Brasil... Não quero ir, pois vejo raios e trovões por todo céu! Aquilo sim, não me enganam, é o verdadeiro inferno! A travessia do mar é tenebrosa, fede a enxofre. Dizem que as naus são engolidas por monstros e serpentes marinhas; quando não, atacadas por corsários! Deus me livre e guarde deste tormento! Sou um animal arrastado para os porões de uma nau imunda, como um bicho selvagem, uma negra africana!
Soube à boca miúda, das cousas horripilantes que lá se encontram... É uma terra maldita, de selvagens comedores de gente, e de pretos feiticeiros a fazer batucadas na evocação de seus deuses pagãos! Uma terra esquecida, de aranhas peludas, mosquitos sanguinários que deixam pessoas anêmicas, e plantas carnívoras por toda parte... Borboletas gigantes sugam a mente dos homens e morcegos raptam pessoas para suas cavernas! Ruas infestadas de cobras e lagartos que devoram quem por perto passa... Ratos ferozes tomam conta dos becos e invadem as casas com doenças incuráveis... Macacos atacam moças de família... Meu Deus, animais ferozes como tigres, leopardos, onças e preguiças! É um lugar indecente, onde a imoralidade constrói fortalezas intransponíveis!
João prometeu-me abrigar em um santo convento, construído pelos frades carmelitas no meio de um rossio! Ora pois, lá continuarei a precaver-me do tinhoso: só andarei acompanhada de minhas damas, mesmo que para alguns breves passeios às margens de um rio, mesmo que me chamem “Maria vai com as outras”. Transformar-me-ei em uma galinha para que o diabo não me reconheça! O convento será meu poleiro real e todos transformar-se-ão em galinhas, a ciscar, cacarejar, bater asas e pôr ovos! A Serpente do Mal não há de me fazer sucumbir, como fez à Eva no Jardim do Éden.
Só tenho receio de uma cousa quando eu morrer: e se os anjos não me reconhecerem e disserem que no céu não há vagas para galinhas? Mas sou eu uma rainha... Ou serei uma galinha? E vai que neste ínterim, o diabo resolve fazer-me galinha assada? Ai Jesus! Ai Jesus!!! Como sofro! Como sofro, meu Deus!
Histórico: A Infanta
Maria Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana,
Princesa do Brasil,
Princesa da Beira, e
Duquesa de Bragança, nasceu em 17 de dezembro de 1734 e foi uma criança precoce e muito bonita, que aos 4 anos de idade lia português e castelhano, e aos 5 anos aprendia latim.
Com a morte de seu pai Dom
José I, tornou-se a
26ª Rainha de Portugal em 13 de maio de
1777, pois a Dinastia de Bragança teve continuidade assegurada através de seu casamento com o próprio tio,
Pedro de Bragança - que subiu ao trono como
Pedro III, realizado no Palácio de Nossa Senhora d'Ajuda em Lisboa, a 6 de julho de
1760. Teve com Dom Pedro III sete filhos; quatro meninos e três meninas.
Dona Maria I se revelou uma figura de personalidade forte, embora
misericordiosa, ficando conhecida pelo cognome de “A Piedosa” ou “A Pia”, devido à sua
extrema devoção religiosa. Foi a primeira rainha em Portugal a exercer o poder efetivo e teve atuações relevantes na política, na cultura e na economia de seus reinos.
Seu primeiro ato como rainha foi a
demissão e exílio da corte do
Marquês de Pombal, dando início a um período que ficou conhecido como a
Viradeira, designação que se deu ao período iniciado a
13 de março de
1777 com a nomeação de novos Secretários de Estado por Dona
Maria I, em substituição ao
Marquês de Pombal. Rainha amante da paz,
dedicada a obras sociais, era no entanto uma pessoa
melancólica com grande fervor religioso. Quando ladrões espalharam hóstias pelo chão ao invadirem uma igreja, não exitou em decretar nove dias de luto, adiando os negócios do Estado e acompanhando a pé, com uma vela às mãos, a procissão de penitência que percorreu as ruas de Lisboa.
Dom Pedro III,
esposo de Dona Maria I morreu em 1786,
deixando-a muito abalada emocionalmente e em 1788 dois dos
seus filhos: Dom José e Dona Maria Ana,
também faleceram, além de um
neto recém-nascido e um
genro. Dom José era o príncipe herdeiro,
Duque de Bragança,
Príncipe da Beira,
Príncipe do Brasil, e tinha 26 anos de idade.
Dona Maria não conseguiu se refazer das mortes em família, acreditando na lenda de que havia uma
maldição entre a Dinastia de Bragança, por conta da história de que um de seus antepassados havia certa vez chutado um frade esmoler. Foi quando começou a manifestar
veementes sinais de perturbação mental, sendo
declarada incapaz em 1792 e conhecida como
“Dona Maria, A Louca”.
Mentalmente instável e afastada do trono, foi obrigada a aceitar que seu filho Dom João assumisse
oficiosamente a coroa no mesmo ano e passasse a tomar conta dos assuntos do Estado. Em 16 de julho de 1799, oito anos depois, Dom João assumiu
oficialmente a regência. Obcecada com as penitências eternas que seu pai Dom José I estaria sofrendo no
inferno, devido ter permitido ao Marquês de Pombal perseguir os jesuítas, o via como
“um monte de carvão calcinado”.
Acreditava que o demônio a visitava de vez em quando a espera de uma falha em sua conduta religiosa.
O
psiquiatra e médico real de George III da Inglaterra, enlouquecido em
1788, foi para Portugal especialmente para tratá-la. Mas de nada adiantaram os "remédios evacuantes" de
Dr. Willis. Sua
instabilidade mental se agravou mais ainda durante os lutos por seu marido e filhos.
A marcha da
Revolução Francesa, e a
execução dos
Reis de França na
guilhotina, apesar de impulsioná-la a dar abrigo aos refugiados, fez com que tomasse verdadeiro pavor de que algo semelhante acontecesse em Portugal, passando a ter
terríveis pesadelos com essa forma de execução. Para amenizar suas culpas, financiava uma
infinidade de procissões e missas,
além de lavar os pés dos mendigos - que considerava puros de alma por serem um possível disfarce de Jesus, santos e anjos.
Portugal continuou fazendo frente à França, recusando-se a cumprir a exigência do Bloqueio Continental às Ilhas Britânicas, sendo então invadido pela coligação franco-espanhola. Ameaçado e sem alternativas,
Dom João decidiu transportar a família real para o
Brasil em
13 de novembro de
1807. Assim como a princesa Dona Carlota Joaquina, a rainha
Dona Maria não aprovou a idéia de deixar Portugal. Dona Maria vivia com
medo de ir para o inferno e acreditava estar a caminho do próprio quando seu filho informou-lhe sua decisão de transferir a Corte Portuguesa para o Brasil. Ela havia escutado muitas histórias fantasiosas a respeito da colônia que a deixavam muito perturbada. A medida que o dia da viagem se aproximava, tinha
pesadelos terríveis com
plantas carnívoras e
borboletas descomunais que sugavam o cérebro das pessoas,
macacos ferozes,
cobras gigantes espalhadas pelas ruas,
ratos imensos por toda parte, uma quantidade absurda de mosquitos, enfim, uma
“terra de pretos feiticeiros” e “índios selvagens que comiam gente”.
Uma gente indecente e sem noção de moralidade.
Havia construído em seu imaginário uma idéia muito exótica da colônia. Seria uma terra selvagem, com
negros africanos e índios dotados de hábitos pouco cristãos,
como culto a deuses pagãos e canibalismo, conforme os relatos de Hans Staden em sua experiência com os índios goytacazes. Com todas essas informações de caráter etnocêntrico a respeito do Brasil, associadas à loucura, Dona Maria passou a acreditar que o Brasil era uma terra de absurdos:
“Eles vivem sem conhecimento de nenhum deus, sem inquietude de espírito, sem lei e sem nenhuma religião. Tal como os animais, estão à mercê dos seus instintos. (...) Tanto os homens como as mulheres andam completamente nus.” (...) A alimentação regular desses selvagens é composta por serpentes, crocodilos, sapos e lagartos, os quais são tão estimados por eles como os galos, lebres e coelhos por nós. (...) Creio que se Deus não tiver piedade desses selvagens, eles dificilmente serão convertidos ao Cristianismo, e isso sobretudo em razão do seu detestável hábito de comerem-se uns aos outros.” (Nicolas Barré em 1555)
“Existem no Brasil , muitos animais selvagens, entre os quais a onça, o tigre e o leopardo...” (...) A preguiça (...) é o animal com aparência mais
monstruosa que já vi: seu corpo é todo coberto por escamas como o do rinoceronte, mas a sua flexibilidade se assemelha à da serpente. Nem mesmo o demônio deve ser tão assustador.” (Richard Flecknoe em 1648)
Toda a corte portuguesa corria, em fuga alucinada, em direção ao embarcadouro, tentando desesperadamente carregar todo tipo de coleção de arte e objetos de valor transportáveis, como prataria, jóias, quadros, instrumentos musicais, livros etc.
Dona Maria embarcou no navio aos brados de desespero,
com gritos de protesto que produziu um grande escândalo no cais. Segundo Oliveira Martins,
“Foram, aliás, seus gestos alucinantes o único vislumbre de vida,
pois o brio, a força, a dignidade portuguesa, acabavam ali nos lábios ardentes de uma rainha doida...”
Quando Napoleão foi derrotado em
1815, Dona Maria foi
proclamada Rainha do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves em 16 de dezembro.
No Rio de Janeiro, enquanto Dom João foi se instalar na Quinta da Boa Vista e Dona Carlota Joaquina no Paço Imperial e depois em uma chácara em Botafogo, Dona
Maria foi acomodada no Convento dos Carmelitas, ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, expulsando os frades para a região da Lapa. Dona Maria,
tentava aos poucos se adaptar às diferenças de hábitos da colônia,
vivendo trancada e saindo apenas para passear acompanhada de suas damas de companhia e enfermeiras. Os aposentos de Dona Maria foram instalados no pavimento nobre do convento. Ali a triste soberana passou seus últimos anos de vida, com o espírito envolto nas trevas da demência.
Quando o povo reverenciava, respeitoso, a Rainha passando em sua carruagem do Paço, Dona Maria
escondia o rosto atrás do leque aberto para que o diabo,
a espreita nas terras da colônia,
não a reconhecesse. Seu passeio mais habitual consistia em ir até o
córrego do Rio Carioca, juntamente com suas damas de companhia, no Cosme Velho, onde ficou conhecida a “Bica da Rainha”. E foi justamente desses passeios acompanhados que surgiu a expressão popular “Maria vai com as outras”. Às vezes Dona Maria
acreditava ter se metamorfoseado em uma galinha, e se punha a
ciscar,
cacarejar e bater asas, fosse na clausura do convento ou até mesmo em praça pública, o que deixava suas damas de companhia muito envergonhadas.
Dizia que
o convento era um grande poleiro e que todos eram galinhas.
Dona Maria morreu em 20 de março de 1816 no Convento dos Carmelitas aos 81 anos de idade e completamente fora da realidade em que vivia.
Carnavalescos: Arthur Reiy e Renato Figueiredo Revisão de texto: Jacqueline Luppo

Referências Bibliográficas:
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NORTON, Luiz. A corte de Portugal no Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional / INL / MEC, 1979.
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SANT’ANA, Sonia. Leopoldina e Pedro I - a vida privada na corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
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SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal, Volume VI: O Despotismo Iluminado (1750-1807). Lisboa: Verbo, 1982.
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VIEIRA, A. Fernando e ROEDEL, Hiran. Rio de Janeiro - Panorama sociocultural. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá / Reditora Rio, 2004.
Fontes de pesquisa:
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