A Festa do Bonfim
Deve-se
ao Capitão de Mar e Guerra Teodósio Rodrigues de Faria, português
que se radicara na cidade de Salvador - o início do culto ao Senhor
do Bonfim. Marcou-o a entronização da imagem trazida de Portugal na
Igreja N.S. da Penha de França, na ponta da península de Itapagipe
em 1745.
Nove anos depois e pela festa de São João, inaugurou-se no outeiro
que tomou o nome da milagrosa divindade a igreja de sua devoção. Era
diferente da atual. Não tinha, na fachada, as duas portas laterais
hoje existentes nem, tampouco, obras de talho, ornatos, que tanto
a embelezam nos dias presentes.
O admirável retábulo da capela-mor data de 18l4 de autoria de Antonio
Joaquim dos Santos. Quatro anos depois, Franco Velasco executou a
pintura do teto e dos painéis dos altares.
De 1837, são os painéis da sacristia pintados por José Teófilo de
Jesus.
O relógio da torre dos sinos - feito na Bahia – é de 1848.
Em 1863 e por doação de um ex-juiz da Irmandade o negociante português
comendador José Pinto Rodrigues da Costa - fez o adro da igreja cercado
pelo extenso gradil de ferro que o serralheiro Feliciano José artisticamente
executou.
Finalmente em 24 de Junho de 1923 - mais de um século e meio depois
de erguida – D. Miguel de Lima Valverde procedeu a solene sagração
da mais popular das igrejas baianas.
Depois do Natal com os lindos presépios, os Magos e as folhagens de
pitangueira; depois dos Reis, com ternos e ranchos no Largo da Lapinha;
decorre a Festa do Bonfim, que lembra a do Círio de Nazaré - no Pará
e a da Penha de outros tempos, no Rio de Janeiro.
Desde o começo do ano a Igreja do Senhor do Bonfim - erguida num~gracioso
calvário coberto de edificações de relva - enche-se de flores e de
cânticos, de incenso e de luzes para as novenas ao milagroso, Senhor.
No Brasil, a vestimenta regionalista da Bahia está na “Baiana” de
bata rendada e no Gaúcho, o chapelão e as bombachas.
Mas a “Baiana” tem a primazia.
Internacionalizou-se, através a grande Carmen Miranda.
As “Baianas” tem as suas batas com minguadas mangas que cobrem as
axilas – deixa-lhe o colo nu. E essa bata trabalhada em renda de crivo,
afunila-se na cintura sob a compressão de duas ou três anáguas a tufar
a larga saia de roda.
Nos pés, arrastam delicadas chinelas bordadas a ouro, deixando metade
dos pés descalços. Do ombro esquerdo pende o Pano da Costa de listas
multicores.
Na cabeça nada mais do que o torso.
Essa indumentária de aparente simplicidade, empresta a “Baiana”, uma
graça característica.
Esse, o traje. Agora os adornos.
Colares de grossas contas e rosários de contas miúdas sobre o rendado
das batas. No alto do braço esquerdo larga pulseira de ouro. Nos pulsos,
bolas de ouro e voltas de búzios da Costa. Nas orelhas as argolas
ou brincos de coral.
Depois vem o Barangandam ou Balangandam, que é uma peça de prata em
forma de argola, que - de uma corrente em torno do pescoço - pende
até o meio das costas. Nessa argola estão pendurados uma porção de
amuletos; pequenos cilindros com pós milagrosos e madeiras santas;
orações, anéis, figas, cachos de cabelos, dentes de crianças, búzios
e moedas; presas de besouro, corações, cinzas e ancoras; bonequinhas
simbolizando São Crispim, São Cipriano. São Cosme e São Damião; o
canguê - amuleto contra o mau olhado; cola amarga e favas de olho
de cabra que afugentem espíritos perturbadores; pequeninas contas
agrupadas em estiletes guarnecidos de rosas de prata.
As conchas pretas e roxas representam Omulú (São Lázaro), as brancas,
Oxalá (Senhor do Bonfim); cor coral, azuis ou verdes Ogum (Santo Antonio);
vermelhas Xangô (São Jerônimo); douradas ou prateadas, Oxum (Nossa
Senhora das Candeias); amarelas, Nanã (Sant’Ana); brancas-miudinhas,
Iemanjá (Nossa Senhora da Conceição).
Além do Balangandam há a Penca - suspensa na cintura pelas alças passadas
numa corrente de prata, fechada por uma chave do mesmo metal.
Na Penca estão:
-
A Figa, o mais comum dos amuletos, obrigatoriamente
usada contra doenças, desastres e mau olhado.
-
Pau de Angola - encastoado em prata, favorável a longevidade.
-
Cilindros, com arruda, guiné e manjericão - contra a
má sorte.
-
O Sino ou Duplo Sino – o Adjá - próprio
do candomblé.
-
O Cajado, a Tartaruga, assim como a Aranha,
o Porco, o Trevo, o Corcunda,
os Triângulos Mágicos, as palavras Agha
e Aoun, são fetiches de bom augúrio.
-
O Coração, quer dizer amor.
-
O Cachorro é o emblema da fidelidade e evoca São Lázaro
e São Jorge, tal como o Carneiro lembra São Jerônimo.
-
As Mãos Dadas significam amizade.
-
A Lua representa São Jorge.
-
A Pomba lembra os mártires, tornados Santos,
-
A Romã representa o gênero humano em todo o seu esplendor
e miséria.
-
A Chave sugere o tabernáculo ou o oratório, mas a Chave
de Figa vale como talismã para fechar o corpo de todos os
males.
-
A Ferradura atrai a felicidade.
-
O Galo é a representação de todos os Santos.
-
O Caranguejo, Omulú (São Lázaro).
-
O Boi é Omulú Moço (São Isidoro).
-
O Veado, tal como a Espada, é Oxalá guerreiro
e caçador (São Jorge).
-
A Faca é o símbolo de Ogum (Santo Antonio).
-
As Uvas representam Oxum que é Nossa Senhora das Candeias.
-
O Caju, o Abacaxi, e o Milho,
lembram ainda São Jerônimo.
-
A Moringa ou Moringue evoca São Cosme
e São Damião.
-
A Palmatória é o símbolo da Nanã (Sant ‘Ana) e o Sol
de Oxumaré que é São Bartolomeu.
-
O Burro simboliza Xangô (São Jerônimo).
-
O Tambor, o Pandeiro, as Moedas
e os Peixes, também representam cerimônias dos terreiros.
Não é de estranhar assim, é claro, que ao lado de grande beleza ornamental
do quadro da lavagem do adro de Igreja do Senhor do Bonfim, não há
como esquecer também que o baiano pode ser sincero em qualquer pólo
oposto do seu espírito religioso, seja no culto ao Senhor do Bonfim,
seja na sua fé em Yemanjá - Rainha do Mar.
Novenas de Bonfim!
De todos os cantos da cidade, gente acorre a assisti-las.
Nesse tempo - tão distante já! O Reverendo Padre Teixeira entre o
beija-mão dos fiéis e o repicar dos sinos, oferecia as crianças passando-lhe
a mão pelos cabelos - lindas gravuras religiosas.
Iniciavam-se as rezas e os crentes curvavam os joelhos. Era a hora
dar graças pedidas a divindade.
Os fiéis pagavam as suas promessas subindo a ladeira de joelhos e
chegados a sacristia entregavam ao zelador longas velas de cera. Uma
das salas do templo é reservada as provas dos milagres do Nosso Senhor
do Bonfim.
Popular é a tela, representando um pedreiro que a restaurar a torre
da Igreja, projetou-se no espaço! Despejar-se-ia no lajedo não fora
ter evocado o Senhor do Bonfim nessa hora do desespero. E quase não
sofreu, foi um verdadeiro milagre.
A lavagem do Bonfim é uma festa católica de data móvel, que se realiza
por volta do dia 15 de janeiro.
Muito já se escreveu a respeito desta festa, que é o espetáculo feiticista
mais completo do Brasil.
A “Festa do Bonfim” se reveste do maior brilho, oferecendo um interesse
todo especial por ser na Bahia a caldeira onde se fundem as religiões
Gêge e Nagô da África com a católica; pois o “Senhor do Bonfim” é
o mesmo que o ser “Oxalá” dos povos africanos.
Na Igreja da Conceição da Praia, localizada em frente ao Mercado Modelo
reúnem-se os devotos em caminhões e carroças com arcos de bambu enfeitados
com guirlandas de flores naturais e de papel colorido, vestindo as
suas melhores roupas, geralmente brancas e chapéus de palha da mesma
cor. Em alguns caminhões vão as bandas de música tocando sem parar.
Um alegre burburinho vem já do Largo onde se movimentam graciosamente
as ‘baianas” que vão tomar parte da romaria, quase todas de idade
avançada, bem curtidas na lida do fogão do acarajé, bolinhos de tapioca,
pé de moleque, cocadas, cuscús e bolo de milho.
Quando as “baianas” se reúnem para a romaria elas vão ricamente trajadas
com os balangandans ou barangandans e de pencas de ouro e de prata.
Misturam-se os torsos, que parecem um pedaço de jardim que vai na
alto, pairando sobre elas numa leveza de véus desfraldados de sutil
névoa branca, do mais belo efeito. Como são alias altamente decorativas
todos de roupas duma brancura resplandecente, com as suas vastas saias
de duro engomado, que dão a um no gingar do passo, no algo das chinelinhas
de finos saltos, o ondular de outras grandes flores.
À cabeça carregam, ritualmente, grandes vasos com flores ou “água
de cheiro”, coroadas de leves pendões de flores brancas, que chamam
de “sorriso de Maria”, que levam com grande elegância, nos ombros
ou sobre a cabeça. As flores mais procuradas e usadas, são as angélicas.
As “baianas” vão a pé, na frente acompanhadas pelos aguadeiros de
Itapagipe, conduzindo barris sobre o dorso dos jericos enfeitados
- que levam ao templo a água suficiente a lavagem do adro e dos degraus
da Igreja, entoando cânticos de acordo com a seita ou o “Orixá” que
pertencem.
Em tudo há o mesmo ar de festa, a reminiscência daquela contagiante
animação que levava outrora de reboque com as “baianas” toda a população
do bairro até a colina sagrada.
Partindo o cortejo, perto das 10 horas da manhã, põem-se
todos em movimento e é admirável o garbo com que partem aquelas mulheres
de mais de meio século de Idade, Por toda a parte, além das calçadas,
as ruas por onde passam, novos adeptos vão se incorporando e ao chegar
na colina do Bonfim, o número de pessoas é enorme, formando uma multidão
que canta, dança e entoa canções.
A chegada a Igreja de “Nosso Senhor do Bonfim” é precedida
por fogos de artifício e gritos de alegria.
Diante do templo, aos pés da larga escadaria de vários de graus param
todos - de repente há um grande silêncio na Praça sobe então modulado
e grave no ar tranquilo, a comovente oração de “Nosso Senhor do Bonfim”.
Todos cantam e é de nova a alma religiosa aflorando do mais profundo
de cada um a completa dissipação de qualquer vaidade alheia.
Ao término da oração, as “baianas” comumente as filhas de santo das
nações africanas de Kelú, Alaketa e Angola em grupos de cinco ou seis,
vão subindo majestosamente os degraus, ao ritmo das ladainhas e cantos
cheios de promessas.
A brancura das flores e das suas vestes, numa vibração de braços e
de mãos, traça então no ar o gesto antigo da lavagem, derramando com
grande graça, no adro e nos degraus, a água de seus jarros com água
perfumada e as flores são espalhadas na porta da Igreja; ao mesmo
tempo em que outras “baianas” agitam no ar as vassourinhas simbólicas
que carregam.
Terminada e lavagem, começam as vendas nas barraquinhas de doces e
comidas típicas, geralmente muito gostosas e feitas pelas próprias
“baianas” do Senhor do Bonfim.
Vende-se tudo e há danças nos jardins fronteiros a Igreja, que se
estendem durante toda à noite e duram geralmente três dias.
Antigamente estas manifestações eram feitas no interior da própria
igreja, mas o clero, condenou esta demonstração de religiosidade,
considerando-a pagã; assim hoje elas se limitam ao adro e a sua escadaria.
Passados dois dias, noite de sábado – a Festa dos Ternos.
Os ternos! - gritam de todos os cantos e para se ver melhor o povo
procura os lugares mais altos para assistirem a passagem da charanga,
tocando um baião, tendo a frente o porta-estandarte cheio de malabarismo
nos seus passos o gingando com uma destreza espetacular, manejando
o seu pavilhão triunfal.
E, ao som do maxixe que a charanga do bloco ataca, os festejeiros
vestidos a caráter, terno branco impecável, camisa de meia aberta
ao peito, cartola brilhando, dançam sem parar, tocando os seus violões
e cavaquinhos, tangendo os pandeiros e maracás, vão desfilando como
um bloco de carnaval.
E assim vem, um depois do outro, no mesmo jeito, todos os “ternos”;
os principais “ternos” que desfilam são: “Terno da Primavera”, o “Pideo”,
o “Arigofe”, o “Sol do Oriente”, os “Batutas”, o “Bacural” e o da
“Lira Chorosa”, a entoar as suas canções, levando seus estandartes
cheios de medalhas de ouro, assim como, outros troféus conquistados
nos concursos populares.
E, chega segunda-feira do Bonfim! Algo de paganismo se vê então nos
festejos de Itapagipe. Depois da romaria e da missa, os homens com
fitas nos chapéus, nos cabelos e na cintura, agitando ramos verdes
vão a Ribeira... Há também tocadores de violão, cavaquinhos, flautas,
clarinetes, harmônicas, pandeiros e chocalhos.
A música sobe a altura e os cantadores entre constantes paradas nos
botequins do caminho cantarolam em plenos pulmões:
Eu não era assim
Eu não era assim
Três dias de Reis
Segunda-feira de Bonfim!!!
Na Ribeira para matar a sede e tirar a fome, encontram muita comida
com azeite de dendê e muitos abacaxis, melancias e cajus.
No adro da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, coretos com bandas de
música a tocar dobrados, crianças nas quermesses e o povo a beber
nas barracas.
À noite - para o povo aglomerado no Largo e numa apoteose à Festa,
que o templo todo iluminado santifica os fogos de artifício de lágrimas
a desmanchar-se na altura em estrelas de todas as cores.
O elemento africano aí estava; cada tribo se exibia conforme seu estilo
de dança e contorna, sem esquecer o Angola, que de argolinha na orelha
e ao som do berimbau, praticam proezas jogando capoeira.
Tudo isso forma a “baiana”, essa “baiana” que há séculos não sai da
moda e que com cantiga ou sem cantiga - tem graça como ninguém.
Resumo do enredo:
Erguida sobre a colina sagrada, nos confins da Península de Itapagipe,
a Igreja do Bonfim, templo de Oxalá, é o grande palco do sincretismo
da Bahia. Nascida da devoção do militar português Teodósio Rodrigues
de Farias, levou mais de meio século a sua construção, terminada,
nos primeiros anos do século dezenove. É uma grande igreja branca,
de interior modesto, inferior aos grandes monumentos religiosos que
se erguem na antiga cidade. Nas suas paredes encerram os mistérios
da alma mística da Bahia. Sua sala dos milagres é testemunha poderosa
dos feitos insuperáveis do padroeiro. Aí se realiza a maior festa
religiosa e popular dessa terra, a “Festa do Bonfim”, tradição que
vem desde o século dezessete, com data móvel e igual serventia para
os devotos de Oxalá, o deus da criação. Ela se prolonga por toda a
semana que antecede o segundo domingo após as Festas de Reis, mas
a quinta-feira da Lavagem do Bonfim é o Dia Maior. Em carroças enfeitadas,
mães e filhas-de-santo deixam a porta da Igreja de Nossa Senhora da
Conceição da Praia, outro bastião sincretista da Bahia, sobre as cabeças
vasos de barro contendo água, perfumes e flores. A procissão atravessa
meia cidade, mas a cidade inteira parece acompanha-la ou esperar pela
sua chegada na Ladeira e na Praça do Bonfim.
Já funcionam as barracas de comidas típicas, de batidas e bebidas
de toda sorte, os tabuleiros das baianas, todo o comércio das festas
de largo. E a lavagem, cerimônia de origens remotas, acontece em um
festival de cores, perfumes, batuque, cânticos e danças afro-brasileiras.
À noite, centenas de lâmpadas iluminam o templo e a colina, multidões
de devotos enchem a igreja e as barraquinhas, juntam à devoção a proximidade
do carnaval, o que certamente concorre para redobrar-lhes à alegria.
Jorge Fontoura
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