E aí, têm patrocínio? Temos : "
José "
A Origem:
Realmente
temos o grande Patrocínio José Maria do Espírito Santo, brasileiro,
mulato, nascido aos nove dias do mês de outubro de 1853; senhor por
parte de pai, escravo por parte de mãe.
Na segunda
metade do Século XIX, os livres costumes do clero brasileiro eram
ainda motivo de comentários escandalizados dos estrangeiros que nos
visitavam.
A escravidão
muito contribuiu para esse quadro, criando facilidades para que numerosos
eclesiásticos levassem a mesma vida dos senhores de engenho.
Muitos
daqueles eclesiásticos eram senhores de escravos, donos de negros
e negras, em suas propriedades rurais ou nas residências urbanas.
Um desses
era o Vigário João Carlos Monteiro, doutor em cânones pela Universidade
de Coimbra, e principal figura do clero de São Salvador de Campos
dos Goitacazes, próspera cidade do norte fluminense. Homem de muito
prestígio e influência, fora ele um dos muitos beneficiados pela escandalosa
distribuição de " africanos livres", - negros apreendidos
em navios negreiros (monstros negreiros ), após a extinção do tráfico
legal, em 1831.
Grande
orador sacro, jogador inveterado e insaciável, devorador de pernil
com arroz de forno, vivia ele, como tantos outros sacerdotes, em notória
desordem com mulatas e negras.
Tinha precisamente 54 anos quando se deixou enfeitiçar pelos encantos
de uma negrinha adolescente de seus 12 a 13 anos - Justina Maria do
Espírito Santo, nascida em Mina, na costa ocidental da África, descendente
de pais já bem aclimatados na região e cristianizados, pelo menos
na aparência.
Justina
logo engravidou e aos 13 anos dava a luz a um menino: "José"
No despacho
do Reverendo Vigário da 1ª Vara, Cônego Pereira Nunes, registra José
Maria do Espírito Santo, filho natural de Justina Maria do Espirito
Santo, eximindo assim toda e qualquer responsabilidade do "pai".
Passou
a infância na Fazenda da Lagoa de Cima, onde pôde observar desde criança
a situação dos escravos e assistir aos castigos que lhes eram infligidos.
Por certo, nasceu ali a extraordinária vocação abolicionista.
Cresceu
criado por seu padrinho com todos os mimos, estudou na escola do Padre
Antunes, onde aprendeu a ler e escrever; em vez de assinar-se José
Maria do Espírito Santo, usava o nome de JOSE CARLOS DO PATROCÍNIO.
Por que
PATROCÍNIO? Porque fora batizado no dia 08 de novembro quando solenizava
a Igreja Católica o "Patrocínio da Virgem Santíssima".
Zeca,
como era chamado, foi trabalhar no comércio como aprendiz de caixeiro,
mas o preconceito racial o privou do emprego, porque o público não
gostava de ver uma pessoa de cor no balcão.
Vinda para a Corte
Tinha
14 anos quando ao chegar à Corte, deslumbrado, José do Patrocínio
ainda encontraria alguns espetáculos desagradáveis e pungentes, pouco
dignos da capital de tão vasto Império. Um deles era o dos escravos,
com grandes cubas de madeira à cabeça indo despejar nos rios, canais
e praias da cidade as fezes recolhidas durante dois ou três dias nos
domicílios cariocas. Pelas ruas, transitavam ainda, com seus rolos
de corda, os mesmos truculentos capitães-do-mato, especialistas em
capturar negros fugidos.
Dificílimo,
o começo de vida do adolescente José do Patrocínio na Corte.
Começou
a trabalhar na Santa Casa de Misericórdia como quase servente de Farmácia
- varria o chão, lavava frascos e misturava drogas. Uma vida sem conforto,
trabalho pesadíssimo, morava e comia na própria Santa Casa. Mesmo
assim começou a estudar, ainda que com muito aperto.
A Santa
Casa fez um entendimento com as irmãs de caridade de onde foram excluídas
as colaborações masculinas, mais um golpe recebido com a saída do
hospital.
Passou
a receber apoio do Dr. Albino Rodrigues de Alvarenga, médico da Casa
Imperial. Continuou seus estudos, ingressando na Faculdade de Medicina
como aluno de Farmácia, concluindo o curso em 1874. O dom de fazer
preciosas amizades era um dos segredos do moço campista. Insinuante,
sabendo captar a confiança alheia, não havia portas que ele não abrisse
naturalmente, quase sem esforço. A casa do colega João Rodrigues Pacheco
Vilanova, em São Cristóvão, tornou-se o seu novo lar. Para que Patrocínio
pudesse aceitar sem constrangimento a hospedagem que lhe era oferecida
pelo padrasto do seu amigo, o capitão Sena propôs-lhe que como pagamento
lecionaria aos seus filhos. Patrocínio aceitou a proposta e desde
então passou também a freqüentar o "Clube Republicano,"
que funcionava na residência, do qual faziam parte Quintino Bocaiúva,
Lopes Trovão, Pardal Mallet e outros.
Patrocínio e a Imprensa
Junto
com Dermeval da Fonseca publicou os Ferrões, quinzenário que saiu
de 1º de junho a 15 de outubro de 1875, formando um volume de dez
números. Os dois colaboradores se assinavam com os pseudônimos Notus
Ferrão ( Patrocínio ) e Eurus Ferrão ( Dermeval ).
Dois anos
depois, Patrocínio estava na "Gazeta de Notícias" onde tinha
a seu cargo a "Semana Política ou Parlamentar" que foi publicada
a 26 de fevereiro de l877 e que assinava sob o pseudônimo Prudhome.
No mesmo ano, o poeta e folhetinista descobriu a vocação de romancista
e escreveu Mota Coqueiro ou Pena de Morte (1877), Os Retirantes (1879)
e Pedro Espanhol (1884).
Em 13
de maio de 1878, Patrocínio deixa o Rio para fazer uma viagem ao Norte
fazendo escalas em vários portos, o que lhe daria oportunidade de
escrever diversos artigos sobre o estado das capitais visitadas.
Patrocínio
encantou-se, com Recife, a legendária cidade da liberdade.
Ao desembarcar
na Paraíba, Patrocínio viu pela primeira vez um quadro impressionante:
Os retirantes.
No Ceará,
o quadro não era diferente. O que ele viu nesses grandes acampamentos
de miséria, era de cortar o coração menos sensível: Os cearenses morriam
como formigas.
Patrocínio
escrevia assim não apenas a sua primeira grande reportagem, mas também
o primeiro trabalho jornalístico que aparecia na imprensa brasileira
sobre o problema das secas nordestinas. Patrocínio confessa:
"Tive ódio da natureza, durante
anos não pude ouvir falar em seca no Norte sem comover-me. Felizmente,
passou. O tempo é um sedativo"
Campanha pela Abolição 1879
Em
torno dele formou-se um grande coro de jornalistas e oradores, entre
os quais Ferreira de Menezes na Gazeta da Tarde, Joaquim Nabuco, Lopes
Trovão, Ubaldino do Amaral, Teodoro Sampaio, Paula Nei, todos da Associação
Central Emancipadora. Por sua vez, Patrocínio começou a tomar parte
nos trabalhos da Associação.
No ano
de 1880, Patrocínio não perdia nenhuma reunião no Clube Republicano
de São Cristóvão.
Na Rua
da Cancela, havia a Escola Noturna Gratuita tão cheia de pessoas de
cor, a maioria escravos fugidos, que a vizinhança passaria a denominá-la
"Quilombo da Cancela".
Em 15
de janeiro de 1881, casou-se com Maria Henriqueta de Sena ( BIBI )
e passou para a Gazeta da Tarde substituindo Ferreira Menezes, que
havia morrido. Na verdade tornou-se o novo proprietário do periódico,
comprado com a ajuda do sogro. Patrocínio tinha atingido a grande
fase de seu talento e de sua atuação social.
A 25 de
março de 1884, o Ceará inteiro era declarado livre, exatamente no
mesmo dia em que, na França, Patrocínio se reunia com cerca de trinta
figuras do mundo político e jornalístico francês.
Depois
de duas viagens ao Ceará e de uma à Europa voltava pela primeira vez
à terra natal em 10 de março de 1885, refazendo às avessas o percurso
que o trouxera ao Rio de Janeiro.
Na volta
traz consigo a mãe, a modesta quitandeira de Campos que infelizmente
no dia 18 de agosto do mesmo ano morre sem que houvesse visto chegar
o dia da liberdade para os negros de sua terra.
Sua vida?
Igual ou quase igual a de tantas outras trazidas da África.
Confederação Abolicionista
1886
Fundou
a Confederação Abolicionista, e redigindo o manifesto assinado também
por André Rebouças e Aristídes Lobo a ser apresentado ao Parlamento
do Império.
O jornal
Gazeta da Tarde tornou-se o quartel-general dos confederados.
Da redação
do jornal a confederação coordenou a luta que se desenrolava em todo
o território nacional. Promoveu a propaganda em favor da causa abolicionista.
A Confederação
tornou-se reconhecida pelos políticos e temida pelos governos.
Patrocínio
era um dos candidatos da confederação à Câmara Municipal.
Em seu
discurso ironizou impiedosamente os poderes do Imperador Pedro II.
Com entonação
satírica, critica a política imperial, ridicularizando os preceitos
de divindade que cercavam a figura do monarca:
"Sua majestade é o querido
de Deus; se Ele o fez firmamento, foi simplesmente porque sua
majestade é astrônomo; se fez a natureza, se fez esse canto de
terra com esta vegetação... é porque sua majestade é botânico.
Se
nosso solo tem minas preciosas... se o diamante cintila, o ouro
amaraleja; se o carvão de pedra negreja... se há um prisma oculto
de baixo de nossos pés, é porque sua majestade é mineralogista.
Se
há algum de nós, que pensa, que imagina, é porque sua majestade
é poeta; se algum de nós trabalha é porque sua majestade é ativo
... todas as grandezas da criação, desta parte da América, existem
somente por esta simples razão, porque sua majestade dá à humanidade
e a Deus a honra de existir.
Sua
majestade, portanto,... é obrigado, pela sua própria inteligência
e pelo seu muito saber, a responder perante o tribunal da civilização.
Nós temos o direito de perguntar-lhe:
Senhor,
que fizestes vós do povo brasileiro? "
Patrocínio,
mulato, filho de escrava, vindo da senzala, sentia-se o representante
dos escravos brasileiros.
Foi eleito
com grande votação para exercer seu cargo na Câmara. No ano seguinte,
1887, deixava a Gazeta da Tarde, para fundar o jornal Cidade do Rio.
A campanha popular pela abolição atingia o ápice. Multiplicam-se os
comícios, os discursos, as manifestações de rua.
O Milagre da Abolição 1888
A
Princesa Isabel, exercendo a Regência em razão da viagem de D.Pedro
II à Europa, critica a repressão policial que o Gabinete Cotegipe
destinava aos comícios abolicionistas. Cotegipe é forçado a demitir-se
e a princesa coloca em seu lugar João Alfredo, a 07 de março de 1888.
Ferreira
Viana, nomeado ministro da Justiça, declara em nome do gabinete que
o novo governo tem como única finalidade extinguir a escravidão.
Todos
aplaudem, levantam-se, aclamam. Em meio a ovação, Patrocínio, pálido,
voz rouca, os olhos iluminados pelas lágrimas, brada: " Não
peço a palavra, tomo a palavra ". E tinha esse direito.
Sua voz
era o grito de uma raça oprimida que, cansada de pedir a liberdade,
via de repente os objetivos quase conquistados, a luta vencida, a
liberdade próxima.
No dia
13 de maio de 1888, no Paço da Cidade, sob uma chuva de rosas, D.
Isabel, radiante de felicidade, curva-se sobre a mesa e assina o decreto
de sua imortalidade e de sua deposição; com uma pena de ouro adquirida,
por subscrição pública, cuja lista fora assinada por centenas de pessoas,
entre as quais José do Patrocínio.
Está extinta
a escravidão no Brasil.
Ouvindo
os gritos e vivas da multidão, arrojou-se aos pés da princesa, transfigurado
e agradecido, Patrocínio conclui dez anos de campanha:
"
Minhalma, sobe de joelhos nestes paços".
Quando
Patrocínio chegou em casa, a claridade matutina começava a dissipar
a escuridão da noite que caíra, densa, sobre aquele dia de milagre.
E era outro Brasil que amanhecia.
No dia
28 de setembro no aniversário da Lei do Ventre Livre, a princesa Isabel
recebe, em grande solenidade, na Capela Imperial, a Rosa de Ouro que
lhe fora enviada pelo Papa Leão XIII, como sinal de sua estima à libertadora
dos escravos.
Chega a República 1889
Residindo
temporariamente em Petrópolis, Patrocínio chega ao Rio na manhã de
15 de novembro, e relata:
"Fui ao Campo da Aclamação
, reunir-me ao povo disposto a concorrer com a minha palavra e
a minha vida em prol da revolução. Mas o Marechal Deodoro já havia
penetrado no interior do Quartel-General.
Cerca
das três horas da tarde, começou, porém, a circular o boato de
que a República não estava proclamada, visto como não havia precedido
acordo para este fim e grande parte das forças haviam capitulado
por mera solidariedade militar.
Acho
mais regular convidar o povo a acompanhar-nos à Câmara Municipal,
para aí proclamar, solenemente, pacificamente, mas decisivamente,
a República".
Com
isso, José do Patrocínio invocaria para si em artigo o título de "Proclamador
Civil da República". Não lhe fora difícil o assalto à Câmara
Municipal. Como vereador, a ela tinha livre acesso.
Desterrado no Amazonas
Revoltou-se
contra o governo férreo de Floriano Peixoto, que visava manter a ordem
e a autoridade a qualquer custo. O jornal Cidade do Rio revive de
repente.
Patrocínio,
redige um brilhante artigo intitulado "Mais Sangue", tomando
firmemente o partido dos militares rebelados.
Floriano
responde decretando o estado de sítio e punindo os signatários do
manifesto. José do Patrocínio, Olavo Bilac, Wandelkolk, Pardal Mallet,
entre outros, são presos e enviados a Cucuí, às margens do rio Negro,
região onde as febres eram terríveis, desoladoras, assoladas pela
malária.
Em 20
de julho de l897, ano da fundação da Academia Brasileira de Letras,
José do Patrocínio inaugurou a cadeira número 21.
Um futuro de automotores
O
futuro dos transportes estava nos veículos automotores: terrestres
e aéreos. Patrocínio sabia disso. Tanto que foi o precursor do automobilismo
na capital brasileira.
Importou
de Paris o primeiro automóvel que transitou nas ruas do Rio de Janeiro,
motivo de escandalosa atenção. Gente de guarda chuva debaixo do braço
pára estarrecida, como se tivesse visto um bicho de Marte.
Oito dias
depois, o jornalista e alguns amigos arrebentam a máquina contra as
árvores da Rua da Passagem.
Quem poderia
pensar na futura influência do automóvel, diante da máquina quebrada
de Patrocínio?
Ninguém,
absolutamente ninguém!
Um sonho
desde o seu primeiro ano de acesso à Farmácia, foi a construção do
aeróstato dirigível (o balão Santa Cruz), por várias vezes recuou
da idéia, devido a turbulenta vida de jornalista. Em 12 de dezembro
de 1901, uma tempestade devastou a cidade, as chuvas torrenciais com
fortes ventos destruíram o hangar erguido em São Cristóvão, no qual
estava sendo construído o dirigível Santa Cruz. Mudou-se para um galpão
alugado para ganhar tempo.
Patrocínio tinha um sonho - enriquecer com seu balão voador, para
criar um grande jornal, que colocaria a serviço da educação do povo
brasileiro. Esse sonho estava bem vivo em 1903, quando foi chamado
a discursar numa recepção oferecida a um brasileiro que chegava da
França, onde também vinha tentando dominar a navegação aérea: Alberto
Santos Dumont.
O canto do cisne
Tuberculoso,
com febre e os bacilos a minar-lhe o organismo, ainda viveria mais
alguns meses, sustentado apenas pelos artigos mal remunerados e pelo
sonho impossível do balão Santa Cruz.
A 29 de
janeiro de 1905, escreve o "Ave Rússia", saudando a luta
dos democratas contra o czarismo. Esse seria o seu canto do cisne,
o último artigo que escreveria até o fim.
No dia
seguinte, resolve preparar mais um artigo. Algo leve, que interessasse
ao leitor diário. Escreve:
" Fala-se na organização
definitiva de uma sociedade protetora dos animais. Eu tenho pelos
animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que
rudimentar, e que eles têm conscientemente revoltas contra a injustiça
humana. Já vi burro suspirar como um justo, depois de brutalmente
espancado por um carroceiro que atulhara a carroça com carga para
uma quadriga ( carroça para quatro cavalos ), e queria que o mísero
animal a arrancasse do atoleir...."
Não
terminou a palavra, nem a frase, nem o artigo. Levantou-se e correu
para o quarto onde estavam a esposa e o filho José. De pé, disse uma
única palavra: " Sangue ". E morreu.
Não acabou
apenas o Santa Cruz, vendido aos ferros-velhos do Rio pela família,
mas ainda a idéia da estátua àquele de quem Bilac dissera já ter,
em vida, a imorredoura cor do bronze imorredouro.
O Brasil
teve nele um dos momentos mais fulgurantes de sua inteligência e da
nobre coragem de lutar pelo ideal de liberdade.
E aí,
têm Patrocínio?
Jorge Cunha
Bibliografia:
- A Vida Turbulenta de José do Patrocínio
Autor R. Magalhães Júnior ocupou a cadeira nº 34 na
ABL até 1981
2ª edição LISA- Livros Irradiantes S/A
- Grandes Personagens da Nossa História
Volume III Abril Cultural
Site da Academia Brasileira de Letras
(www.academia.org.br)
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