TEM JANGADA NO MAR,
HOJE TEM ARRASTÃO
Justificativa:
"Minha jangada de
vela,
Que ventos queres levar ?
De dia vento da terra,
De noite vento do mar..."
O
enredo "Tem jangada no mar, hoje tem Arrastão estrutura-se a partir
da intenção de contar a trajetória histórica das jangadas e a vida
cotidiana dos jangadeiros. A idéia central está baseada na música
"Arrastão", de autoria do compositor Edu Lobo em parceria com Vinícius
de Moraes, que retrata as jangadas no mar, as lendas e as crendices
dos jangadeiros e a sua volta do mar com as redes cheias de peixe,
em sinal de benesses alcançadas com o seu labor, de modo a trazer
fartura de alimentos para as pessoas simples que vivem deste ofício.
Três
setores compõem a estrutura do enredo:
-
O
histórico, onde será narrado o surgimento da jangada;
-
A
vida cotidiana dos pescadores, seus hábitos e costumes; e
-
O
místico, no qual se elencam as crendices que habitam o imaginário
dos jangadeiros e de seu povo e o folclórico, que reúne as lendas,
as sabenças, os usos e os costumes do povo do mar.
Sinopse:
"Olha o Arrastão entrando
no mar sem fim..."
Jangada, uma simples embarcação
rústica há séculos nas águas banhadas pelo sol no litoral do Nordeste
brasileiro. Foi trazida da Índia pela portugueses com o nome de "xanga",
que tem o significado de juntar nos fins do século XVI. Sua construção
frágil de madeira leve não utiliza pregos entre as toras para formar
o piso. Sobre ele encontra-se o banco de vela , a salgadeira, banco
de governo, calços de bolinha, espeque, tolete, mastro, tranca, cavilhas
e o remo de governo.
Os pescadores que trabalham na jangada respeitam uma hierarquia, com
muita disciplina e solidariedade, constituída com os seguintes postos:
mestre-piloto da jangada: é o primeiro pescador, que tem a responsabilidade
da navegação, a escolha do pesqueiro e a duração da pesca. Leva o remo
de governo na mão para definir o rumo, sentado no banco de governo também
conhecido como banco de mestre. Ele é a maior autoridade da jangada,
pois quem é mestre deve saber...
A segunda pessoa da jangada é o proeiro. É quem puxa o peixe na linha
do cardume. Substitui o mestre em caso de impossibilidade do comando.
Fica sempre à direita das peças da jangada e aí começa a pescar.
O terceiro pescador é o bico de proa, que substitui o proeiro. O quarto
e último homem da jangada é contra-bico, que pesca na proa da embarcação.
Esses são os pescadores intrépidos, conhecidos como jangadeiros.
Percebendo à primeira vista, a jangada pode parecer uma embarcação fabricada
às pressas por náufragos; contudo, as aparências enganam... Sem dúvida
nenhuma, seu design é simples, porém é forte e tem condições de navegar
por muitos dias. Existem jangadas que navegam lado a lado de grandes
transatlânticos, que só as águas do oceano registram.
Vida de Jangadeiro
A vida de jangadeiro não é
muito fácil. O sol aparece às 4 horas da madrugada. Mal o dia rompe,
a praia começa a encher-se de pescadores e de habitantes do povoado.
O mestre piloto, acompanhado dos outros três tripulantes da embarcação,
o proeiro, o bico de proa e o contra-bico, içam a vela para lançar a
jangada ao mar, empurrando-a sobre os troncos de carnaubeira, o que
é tarefa de todos. Uma vez na água, quase que imediatamente a jangada
fica encharcada, parecendo que vai afundar. Mas é só impressão... Isso
é quase impossível de acontecer, já que o máximo que pode ocorrer é
a jangada emborcar. Para resolver o problema e desemborcá-la, só o jangadeiro
experiente e bom nadador o pode fazer.
Pulam para cima da prancha e, ao embalo da onda, lá se vão, pegando
o sol com mão na subida, enquanto na terra a família acena, esperando
e rezando pela volta, conforme relatam os versos de Dorival Caymmi,
numa de suas composições:
"Óh ! Deus,
adeus,
Pescador não esqueça de mim
Vou rezar pra ter bom tempo, meu nego,
Pra não ter tempo ruim..."
Jangada e jangadeiros, em
direção ao alto mar e botar pra maré, levando apenas um barrilzinho,
a quimanga da comida (quase sempre essa comida é peixe assado, farinha,
rapadura e banana), a tapinambaba, o tuaçu (preso na ponta de um cabo
forte chamado poita), paus para matar o peixe, um samburá para paiol
da pescaria. E, apesar de tudo, como a brisa heróica, esses pescadores
enfrentam o alto mar, nessa prancha lisa e sem defesa para ganhar seu
pão de cada dia, a cada amanhecer do Nordeste brasileiro.
Lá se vão esses corajosos homens sob o sol ardente, o tempo todo; vão
com seus medos: o terror lendário que vem de remotas tradições, o desventuroso
Dragão do Mar, que provoca as grandes vagas e as tormentas. Há ainda
outros temores como os tubarões predadores que os seguem, às vezes,
na esperança de uma boa presa. Na verdade, contudo, o receio maior dos
jangadeiros vem de lendas, tais como as das medonhas sereias ou iaras,
seres metade mulher, metade peixe, que seduzem com o seu canto, que
faz os navegantes e pescadores se apaixonarem, atirando-se nas águas
para reunir-se a elas e nunca mais voltar. Outras ameaças ainda assolam
os heróis do mar: arraias gigantes, polvos monstruosos, raios e tempestades.
Esses homens pescadores que enfrentam o mar sem fim também levam consigo
suas crenças e devoções em Santa Bárbara ou Yansan, a protetora dos
raios, trovões e tempestades, Nosso Senhor dos Navegantes, Yemanjá ou
Janaína, que seria para os jangadeiros a Mãe ou Rainha das águas, protetora
das viagens, dona do reino do mar sagrado e de seus tesouros, a quem
os navegadores pedem fartura para as suas redes. Esta expressão da fé
foi relatada e consagrada nos versos de uma canção de Edu Lobo:
"...Olha o arrastão
entrando no mar sem fim
Êh, meu irmão, me traz Yemanjá pra mim..."
O folclorista Luis da Câmara
Cascudo é mais um a retratar a fé desses homens do mar:
"(...) É que, se o
mar é o seu melhor amigo, o seu tesouro, o seu amor, a sua vida,
é também, quantas vezes, o seu túmulo."
Daí surge uma crendice em
quase todo o Nordeste do Brasil, a famosa Procissão dos Náufragos ou
dos Mortos, na qual as almas dos afogados cantam nas alturas, calando
o canto de sedução das sereias, nos dias de finados.
É de costume dar de vela à tarde, quando no horizonte aparecem as velas
diminuídas, enquanto na praia as crianças correm alegres, anunciando
aos gritos a chegada das jangadas. Logo aparecem as suas mulheres e
filhas donzelas, que ficaram orando rezas fortes para abrandar e afugentar
os raios e proteger seus homens amados, pois quem nasce no mar morre
nele:
"É doce morrer no
mar
Nos braços de Yemanjá..."
Também há as esposas que ficaram
à espera de seus maridos, tecendo rendas para ajudar com as despesas
da família.
As velas brancas, esguias e graciosas, molhadas pelos jangadeiros para
se tornarem mais resistentes a fim de quebrar o vento que sopra, contrastam
com o brilho mar verde e do céu azul. Há jangadeiros que voltam mais
na sombra da noite. Vêm as estrelas por cima como seu guia: são o seu
roteiro, tal e qual já o foram outrora para outros navegadores.
Quando chegam às margens, todos estão à sua espera: não só seus familiares
como também os marchantes, convocados pelo sopro prolongado e rouco
do búzio. O seu samburá cheio de peixes, lulas, polvos, camarões, siris
e estrelas ofertados por Yemanjá é um verdadeiro tesouro, junto ao manzuá
cheio de lagostas. Depois é hora dos pescadores encalharem a jangada,
fazendo-a deslizar sobre rolos de madeira para ficar pronta para outro
dia de heroísmo.
Domingo é o único dia em que os pescadores ficam com suas famílias para
descansar. É também o dia de pôr as velas ao sol e deixar as jangadas
quietas sobre a areia alva. As lendas e histórias trágicas de sereias
e de dragões enchem as horas de descanso, matando a preguiça que o canto
do mar espalha no corpo.
A vida do jangadeiro é dura. É sal, suor e sol, dia após dia...
História de jangadeiro tem sua beleza exótica, que inspirou poesias
e canções famosas como Arrastão, de Edu Lobo e História de Pescador,
de Dorival Caymmi.
"Ê, tem jangada no
mar
Ê, hoje tem arrastão
Ê, todo mundo pescar
Chega de sombra, João
J´ouviu
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
Ê, meu irmão, me traz Yemanjá pra mim
Nhá, Santa Bárbara,
Me abençoai
Quero me casar com Janaína
E, puxa bem devagar
Ê, já vem vindo arrastão
Ê, é a rainha do mar
Vem, vem na rede, João,
Pra mim
Valha-me, meu Nosso Senhor do Bonfim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim."
"Minha jangada
vai sair pro mar
Vai trabalhar, meu bem querer,
Se Deus quiser
Quando voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros
Também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer."
Rio de Janeiro, agosto
de 2002
Jefferson de Oliveira Machado
Carnavalesco
Bibliografia
BETTENCOURT, G. D. Flagrante
do folclore no Brasil
CASCUDO, L. C. Jangadeiros
CASCUDO, L. C. Dicionário do folclore brasileiro
LIMA, H. Imagens do Ceará
SANTOS, L. B. Tipos e aspectos do Brasil
Glossário:
Banco
de Governo - Tábua sustentada por quatro paus que serve de
assento ao mestre.
Banco de Vela - Suporte que sustenta o mastro da jangada.
Botar pra maré - Sair para pescar.
Búzio - Concha usada como buzina ou apito para chamar
fregueses, anunciando a chegada da jangada e do peixe fresco.
Calços de bolinha - Prancha de madeira fincada no centro
da jangada, próxima ao mastro, que se mergulha no mar à guisa de quilha.
Carnaubeira - Palmeira de carnaúba, cujo colmo serve
de rolete para deslizar a jangada na areia.
Cavilha - Tampa de madeira para tapar orifícios; estrutura
sulcada na qual se prende uma corda.
Dar de vela - Retornar da pescaria. Ordem para largar,
deixar o trabalho.
Encalhar - Botar para cima, arrastar a jangada para
a terra enxuta.
Espeque - Esteio, escora, peça de sustentação.
Manzuá - Armadilha feita de bambu e corda de nylon para
capturar lagostas
Marchante - Revendedor de pescado.
Poita - Cabo que prende o tauaçu.
Quimanga - Refeição que o jangadeiro leva para o mar;
pode ser também a vasilha e o recipiente para se guardar o sal.
Remo de governo - Grande pá de madeira utilizado como
leme para a jangada.
Salgadeira - Caixa para se conservar o alimento.
Samburá - Cesto de cipó ou taquara, pequeno , de fundo
largo e boca afunilada, destinado a guardar peixe.
Tapinambaba - Novelo das linhas de pesca.
Tolete - Haste pequena de madeira ou metal que se prende
verticalmente na borda da embarcação para servir de apoio ao remo.
Tauaçu - Âncora rústica de jangada; pedra presa a uma
corda ou cipó.
Tranca - Pedaço pequeno de madeira que serve de trava
para apoiar o mastro mediante uma forquilha.
|