Dorival
Caymmi, o mar e o tempo nas areias de Copacabana
"Sou uma pedra.
Pescar também não sei. Mas isso também não me preocupa. Para a vida
ficar mais bonita, você tem que achar coisas do mar até fora do mar.
Isto é o que importa".
(Dorival Caymmi)
Dorival
Caymmi tem uma história que chega a se confundir com a nossa cultura musical,
com um legado difuso a nossa natureza, em composições que se espargem
ao nosso folclore de tão simples e complexas que são, nos revelando um
homem do povo, um retrato de brasilidade tenra e poética. Dedicou sua
vida à música e a felicidade.
Caymmi nasceu em Salvador BA em 30 de abril de 1914. Filho de Durval (codinome
Ioiô), um mulato charmoso, exímio dançarino de maxixe, Dorival condensa
todas as tendências da miscigenação brasileira, ostentando ainda a vitória
dessa mesma miscigenação, em sua obra e canto.
Cresceu em ambiente musical, aprendeu violão sozinho, o pai tocava bandolim
e a mãe, Aurelina Cândida Soares (codinome Sinhá), cantava. Caymmi participava
ativamente das manifestações de rua, de todos os ciclos de festas do Bonfim,
umbigadas, sambas de roda, toadas, carnavais de rua, candomblé, emboladas,
ouvindo a música de feira do Sétimo Armazém e Água dos Meninos, enfim,
todos os tipos de manifestações musicais que surgissem nas ruas de Salvador.
Estreou como compositor aos 19 anos, com "No Sertão", uma toada
que falava das asperezas do lugar.
Em Salvador teve vários trabalhos antes de tentar a sorte como cantor
de rádio, e em 1936 - como compositor - ganhou um concurso de músicas
de carnaval, onde também participava dos desfiles de corso na folia salvadorense.
Depois de um flerte com as rádios da Bahia, sua terra, Dorival Caymmi
pega um Ita (Itapé) e vem morar no Rio, em 1938. Enfim, lá estava ele,
magro, mulato, com 1,66 m de altura, modesto e asseado, uma mala de tamanho
médio e um pacote grande e quadrado, onde trazia dentre outras coisas
seu violão, devidamente embrulhado para não se passar por vagabundo. E
por falar em violão, anos mais tardes, em 1943, Caymmi ganhou dos amigos
da Rádio Tupy um "Di Giorgio" que recebeu as mais variadas assinaturas,
ao longo de mais de dez anos de sua carreira, onde amigos e artistas,
nacionais e internacionais deixaram um marco de carinho. Em 1953 o instrumento
foi roubado, mas logo recuperado - desgraçadamente seu tampo havia sido
raspado, antes do baiano conseguir reave-lo.
Sua vinda a então capital do País tinha como finalidade a realização de
cursos preparatórios para a faculdade de Direito. E, talvez, arranjar
um emprego como jornalista, profissão que já havia exercido em Salvador.
Fora até indicado por José Brito Pitanga para trabalhar como desenhista
na revista "O Cruzeiro". Mas, incentivado pelos amigos, com
seu talento de compositor, poeta e cantor, é estimulado pela efervescência
cultural da época - rádios, cafés, cassinos, cinemas espetáculos teatrais
e musicais, publicações, etc. - Caymmi, depois da indicação de Assis Valente
para trabalhar numa emissora, mesmo sendo recusado, muda seus planos de
carreira, enveredando para a música, estreando na Rádio Tupi, em 24 junho
de 1938.
Viveu intensamente a boemia das noites cariocas, projetando-se nacionalmente
em menos de um ano, quando, com Carmem Miranda gravou um de seus títulos,
incluído na ultima hora no musical "Banana da Terra" no mesmo
ano de sua chegada ao Rio, era "O Que É Que a Baiana Tem?",
que, em suas próprias palavras, "explicava a um povo estranho ao
meu o que era uma baiana", descrevendo seu traje típico, seus jeitos
e trejeitos. O primeiro sucesso de Dorival Caymmi contribuiria decisivamente
para fazer deslanchar a carreira internacional de Carmem Miranda. Cantou
e contou a paisagem baiana como ninguém em seu jogo diferente de ritmos.
E através de músicas como "A Preta do Acarajé", "Você já
foi à Bahia?" - fez dessa portuguesa uma verdadeira nativa de nossa
terra.
Em 1939 a canção O Mar, composta um ano antes, em ocasião que sequer imaginava
seguir a carreira artística, foi incluída na programação do espetáculo
beneficente organizado pela Primeira-dama, D. Darcy Vargas, no Teatro
Municipal, e filmado pela Cinédia (seu então segundo filme). O próprio
Caymmi foi convidado a participar. O título do espetáculo, "Joujoux
et Balangandans", uma clara referência à letra da canção "O
que é que a baiana tem?", Pretendia assinalar as influências francesa
e africana na cultura nacional. Ainda esse ano, compõe com Jorge Amado
(seu compadre) e Carlos Lacerda a música "Serenata", que cai
em esquecimento por desentendimentos políticos entre Lacerda e Amado.
Nesta época, o poeta incorpora o candomblé em sua vida e conseqüentemente
a Mãe Menininha do Gantois. Filho de santo dessa ialorixá, para quem escreveria
posteriormente, em 1972 a canção em sua homenagem:"Oração de Mãe
Menininha", gravado por grandes nomes como Gal e Bethânea. Caymmi,
filho de Xangô e Iemanjá, torna-se obá de xangô (seu santo de cabeça)
sob sua oriantação, e vive intensamente o sincretismo religioso baiano.
Tranqüilidade seria uma palavra perfeita para descrevermos esse grande
contador da vida dos pescadores, muitas vezes trágica, mas contada por
ele de forma suave, pura e simples. Marcando nossa música para sempre,
quando cantando sua terra: sua vida, seu povo, seu drama, sua luta, seus
mistérios, sua poesia e amores; viu na morena de Itapuã, nas rosas de
abril, em Iemanjá e o vento do oceano, na jangada e o saveiro, os impactos
sócio-comportamentais existentes, também musicado em obras como: "Acontece
Que Sou Baiano", "Saudade da Bahia" e "Samba da Minha
Terra". Cada música é sua inspiração verdadeira e experiência vivida,
é seu sangue é sua carne, é sua verdade. Uma será mais bela, outra mais
profunda, aquela mais fácil, mas nenhuma resulta da busca do sucesso ou
do aproveitamento de qualquer circunstância.
Sua adoração pelo mar e pela natureza, acaba por colocar o homem em sua
real posição - uma parte integrante dela - sem domínio, sem superioridade,
sem controle. É capaz de nos mostrar toda a doçura de viver/morrer no
mar, doçura de viver. E ele segue tranqüilo, chegando a levar anos na
criação de uma música, contando até nove anos para concluir a saga de
"João Valentão", e ganhando a inadequada fama de preguiçoso,
da qual tirou proveito malandramente, deitado na rede nos anúncio de TV.
Burilando um pouco hoje, descansando amanhã, retornando daqui a anos -
é um bom tempo, diz ele, "é um bom tempo".
O baiano participou, ora atuando ora musicando, nada menos que 12 filmes
nacionais, e ainda emprestou sua música ao único personagem brasileiro
de Walt Disney, Zé Carioca, no filme "Você já foi a Bahia?"
Um compositor atemporal, pra quem a moda não existe, Dorival nunca compôs
sob pressões externas. Músicas e letras cuidadosamente elaboradas, exibem
uma constante atualidade, tal qual as cirandas, estilo folclórico que
confessadamente gostaria de compor; esse desejo é bem presente na música
"Acalanto", que soa como uma canção de ninar. Mas sua sensibilidade
não se limitava a arte da música. Além de pintar, desenhava e lia, a ponto
de manter uma conta com um livreiro - cuja livraria ficava no centro da
cidade.
O amor pela pintura é uma constante na vida de Dorival - não fosse ele
também pintor. E dos bons, a ponto de nomes da importância de Portinari,
Pancetti, Cícero Dias, Augusto Rodrigues e Caribé (seu amigo do peito),
cujos quadros estão espalhados pelas três casas do cantor, insistirem
para que ele trocasse o violão pelos pincéis. O convívio com artistas
como Volpi, Rebolo, Pancetti e Graciano, no Clube dos Artistas e Amigos
das Artes (conhecido como "Clubinho"), em São Paulo de 1945,
estimulou ainda mais sua crescente atividade nesta arte.
Na década de 40, o compositor conviveu no Rio com um grupo de intelectuais,
do qual faziam parte Otávio Malta, Jorge Amado, Samuel Wainer, Carlos
Lacerda (com quem até compôs uma música). Muitos eram esquerdistas - alguns
assim continuariam, outros, como se sabe, virariam o disco.
O pintor Clóvis Graciano, embarcando na simpatia de Caymmi por intelectuais
comunistas, convenceu o baiano a realizar o hino da campanha de Prestes,
que então se candidatava a senador, juntamente com Jorge Amado, candidato
a deputado federal. Jorge e Prestes foram eleitos, já Caymmi passou a
ser perseguido pela polícia. Mas, como sua 'envolvência' não era política,
e sim de amigo, de admirador do movimento intelectual -que na sua quase
totalidade, era composta por partidários comunistas - nada de mal lhe
aconteceu.
Apesar de seu grande amor pelo mar, pela música e pela pintura, nada foi
maior que o incomensurável amor pela mineira Adelaide Tostes, ou seja,
Stella Maris; a cantora de rádio que despertou em Dorival, uma paixão
à primeira vista. O que fez com que o galante Caymmi, pedisse a loira
de São Pedro de Pequeri , em casamento. Um casamento que embala esta paixão
até os dias de hoje.
Em seus 90 anos de vida (abril/2004), dos quais, 66 de atividade artística,
o 'janeleiro' -que observa o dia a dia através de sua janela, contando
e cantando o que vê - completa 60 anos de cidadão de Copacabana. Viveu
a boêmia do lugar e fez composições que enalteciam o bairro, representou
em peças nos teatros da região e participou de diversos musicais em seus
cassinos e caberets. Participou da "era de ouro" do radio e
da inauguração das principais redes de televisão do país. Ator e compositor
de comerciais, artista do cinema nacional, esteve em vários filmes que
mostravam a diversidade da cultura brasileira. Como precursor da "Bossa
Nova" compôs músicas, tais como: Sábado em Copacabana e Marina dentre
outras; numa fase também chamada de Urbana e/ou Carioca; enturmou-se com
um grupo de amigos da zona sul, sustentando com Tom, Vinícius, João Gilberto,
Baden Powell e outros, as bases desse novo caminho da musicalidade nacional;
ganhando até um presente musical, 'Tarde em Itapoã', composta e gravada
por Toquinho e Vinícius. Este movimento musical carioca tornou-se um dos
principais da música popular brasileira.
Até agora Caymmi compôs cerca de 100 músicas em que se destacam as canções
praieiras, as de inspiração no folclore da Bahia e os sambas-canções urbanos.
Sua discografia é em torno de 20 discos, sem considerar as gravações de
outros intérpretes.
Grandes nomes da música e das artes internacional se curvaram diante da
capacidade criativa de Dorival, seja homenageando-o ou cantando suas canções;
fizeram de Orson Welles, Sarah Vaughan, Josefine Baker, Amália Rodrigues,
Edith Piaf entre outros, personalidades que tiveram a sorte e o prazer
de desfrutar de sua amizade.
A família Caymmi vai além desse desfrute; fazendo jus ao nome, tiraram
da melhor fonte a melhor água. Não há quem possa negar a união e sintonia
deste Clã musical no palco, além do amor que nutrem pela música. Em 1987,
Nana, Dori e Danilo, os três filhos de Dorival estrearam juntos no Scala
II com o pai, no aniversário de 44 anos de Dori, o que foi tratado pela
crítica, como o acontecimento musical do ano. Talentos que transpõem as
gerações e as artes, tomado por exemplo, Stella Caymmi, neta do grande
compositor, que vem trabalhando na área cultural como assessora de imprensa
dos Caymmis, redatora e editora, com artigos publicados em diversas revistas
nacionais, e autora de perfis biográficos para songbooks de vários artistas,
além de participar da produção de shows da família no Brasil e no exterior.
Lembrando ainda que é a neta Denise quem empresaria toda a família.
A iconografia que carrega o nome Caymmi, símbolo de intelectualidade,
inteligência, ideologia, sabedoria, segurança, carisma e sucesso, resultou
até em homenagens que vão desde de Prêmios (Shell), Títulos (Cidadão Honorário
do Município do Rio de Janeiro e Doutor Honoris Causa - pela Universidade
Federal da Bahia), Comendas (Orde dês Arts et dês Letters e Ordem do Mérito
Judiciário do Trabalho), Medalhas (medalha do Mérito Castro Alves, Medalha
Machado de Assis e Medalha Mérito Santos Dumont), Ordem do Mérito da Bahia
e um busto (modelado pelo escultor Bruno Giorgi nos anos 50) em Salvador,
passando pela praça e avenida Caymmi em Itapoã, sendo campeão do desfile
das escolas de samba do Rio de Janeiro de 1986 - brilhando como enredo
de sua escola (Mangueira), e chegando a universidade Estácio de Sá, que
deu o nome de seu campus em Copacabana como Dorival Caymmi - qual será,
quem sabe? A Universidade do Samba!
Caymmi e sua família moram a mais ou menos 27 anos na rua Souza Lima no
edifício Noa-Noa, no posto 6 (seis) em Copacabana num apartamento de primeiro
andar, a menos de um quarteirão da praia. Vizinho das comunidades do Cantagalo,
Pavão e Pavãozinho, onde está situada nossa agremiação, faz com que nossa
Escola tenha a honra de apresentar este enredo. Mostrando da Zona Sul
para o mundo que Caymmi é o respeito pela vida - é seu ritmo.
Certa feita, numa entrevista - ou encontro de grandes nomes - para homenagear
Dorival em seus 80 anos, idealizada pelo Jornal do Brasil, em Copacabana,
João Ubaldo não resistiu e entregou a falta de intimidade do amigo com
o mar: "Você não é homem de pescaria, de navegação. Não sabe nadar".
Caymmi confessou sem receio, em meio a risos dos amigos: "Sou uma
pedra. Pescar também não sei. Mas isso também não me preocupa. Para a
vida ficar mais bonita, você tem que achar coisas do mar até fora do mar.
Isto é o que importa".
E nesse apanhado de poesias é que o Alegria da Zona Sul lança o enredo
que mostra que "CAYMMI É PEDRA NOVENTA NAS AREIAS DE COPACABANA".
Memorando o orgulho de ter esse ilustríssimo baiano como morador adotado
pela comunidade do bairro. Bairro, espelho do jeito carioca de ser, que
como um postal, leva ao mundo a simpatia e receptividade do povo brasileiro.
Oswaldo Luis (Deco) &
Carlos André Wendos
Carnavalescos
Agradecimentos a:
Denise, Stella Caymmi, Lucia Gutierrez e ao nosso diretor conselheiro
Sr. Lourenço (pela maravilhosa idéia de Dorival Caymmi para o enredo do
carnaval 2004). |