A História e as histórias das Escolas de Samba

Por Cláudio Vieira

 
 

Capítulo 1

Disputa começa no Terreiro

Pai-de-Santo inventa campeonato de sambas em 1929.

          No princípio era o entrudo. Depois veio o Zé Pereira e, com ele, os cordões. Surgiram as grandes sociedades, os clubes de rancho e mais tarde os blocos. E Deus, inspirado como um Joãosinho Trinta, deixou o sétimo dia para criar as escolas de samba. É por isso que o desfile começa domingo.
          A Broadway seria pequena para abrigar espetáculo de proporções semelhantes. Durante aproximadamente 20 horas, 150 mil espectadores assistirão a passagem de 56 mil foliões fantasiados, artistas de 16 operetas que abrangem os mais diferentes temas. Neste palco iluminado, com 540 metros de extensão, a platéia se emocionará com momentos da vida brasileira, curiosidades do estrangeiro e projetos de ficção científica. Tudo ao embalo da cadência do samba, sustentado por mais de 4.500 percussionistas. O espetáculo é único em todo mundo. Este ano, mais de 200 correspondentes da imprensa estrangeira estarão aqui para documentá-lo.
          A escola de samba é produto da alma carioca. um povo que soube superar as dificuldades e transformar em fantasia a realidade dos morros e das favelas.
          O desfile das escolas de samba nasceu da disputa promovida em 1929 por um pai-de-santo. Chamava-se José Gomes da Costa, conhecido nas rodas de batuque como José Spinelli ou Zé Espinguela. Mulato alto, rosto cravejado de espinhas, morador da Rua Engenho de Dentro, hoje AdoIfo Bergamini, perto de onde hoje existe a quadra da Arranco do Engenho de Dentro. Láficava também seu terreiro.
          Espinguela era mulherengo. Casado; tinha vida comportada no Engenho de Dentro, onde abrigava filhas-de-santo dentro de casa. Mas também tinha mulher no Morro de Mangueira. Lá era querido por todos, principalmente pelo jeito festeiro. Trabalhava no jornal Vanguarda. Anunciava aniversários e mortes de sambistas, publicava algumas letras e tinha prestígio com os grandes nomes da música popular na época, entre eles Francisco Alves.
          Naquele tempo, o samba e a gira tinham .ligação muito íntima. Depois das sessões em louvor aos orixás, começava a batucada. Tinha que ser coisa muito discreta, quase secreta, por causa das proibições impostas pelar polícia. O preconceito era tão grande que a batucada era vista como crime e batuqueiro, como marginal. Quando pegavam os sambistas em flagrante, os homens da lei chegavam batendo. Depois, algemavam e prendiam.
          Apesar do perigo, as reuniões eram gostosas. Não havia ninguém melhor do que Zé Espinguela para organizá-las. Juntava meia dúzia de bambas, distribuía bebida à vontade e desafiava os compositores. Escolhia um tema, propunha que fizessem sambas sobre o assunto e premiava os vencedores. A coisa pegou.
          A primeira disputa do samba carioca aconteceu no dia do padroeiro da cidade. Foi num domingo (o sétimo dia da criação, lembram-se?), 20 de janeiro de 1929, quando parte da população festejava São Sebastião na igreja e a outra se concentrava nos terreiros, saudando Oxossi. No terreiro da Rua Engenho de Dentro, Zé Espinguela reuniu sambistas dos principais redutos de batucada do Rio. Vieram os do Conjunto Oswaldo Cruz, que mais tarde daria origem à Vai Como Pode, depois Portela; os do Estácio, representando a Deixa Falar; o primeiro grupamento de batuqueiros a usar o dístico de escola de samba; e os da Mangueira, onde o anfitrião tinha seus envolvimentos.
          Pelas regras do organizador, cada conjunto concorreria com dois sambas. O grupo de Oswaldo Cruz era representado por Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres; a Mangueira, por Cartola e Arturzinho; não há registro sobre os do Estácio. Nem na memória de Cláudio Bernardo da Costa, 91 anos, o sócio número um da Portela, que estava lá naquele dia. Talvez seja o único remanescente do encontro histórico. E lembra como foi.
          "Cada grupo levou torcida de 45 a 50 pessoas, se tanto. Tínhamos dois sambas, um do Antônio Caetano e outro do Heitor; que era muito amigo de Paulo e veio do Estácio se juntar a nós. Heitor tinha trânsito no meio musical. Era muito expedito. Mas o samba de Caetano era melhor que o dele".
          No livro Paulo da Portela, traço de união entre duas raças, as pesquisadoras Marília Barboza e Lygia Santos citam as letras das duas composições apresentadas pelos rapazes de Oswaldo Cruz. A de Heitor dos Prazeres era um show de desprezo à amada:
Não adianta chorar, ó mulher
Sou eu que não quero você
Se é pecado me perdoa
Eu te odeio até morrer
Bem, podes crer.

          O de Caetano chamava-se O Sabiá, um canto de saudade:

Ó que cantar mavioso
que tu tens, ó sabiá!
Teus gorjeios me faz lembrar
A jovem que me faz penar
Pra depois me abandonar.

          Cláudio Bernardo conta que a Mangueira concorreu com Beijos, de Cartola, e Eu quero nota, de Arturzinho. Tem vaga recordação de que um dos representantes do Estácio seria Ismael Silva. A responsabilidade pela escolha do melhor samba caberia a comissão julgadora forma por jornalistas, amigos de Espinguela, uma espécie de presidente do júri.
          "Ficou claro naquela noite, ao final das apresentações, que havia certa simpatia pelo samba de Heitor dos Prazeres. E isso deixou o pessoal do Estácio um pouco enciumado, porque foram eles, praticamente, que ensinaram a turma de Oswaldo Cruz a dar os primeiros passos", lembra Cláudio.
          Espinguela conhecia o eleitorado melhor do que ninguém. Combinou que entregaria o prêmio ao vencedor domingo de carnaval, 10 de fevereiro. Mas, segundo o sócio número um da Portela, entre o dia do concurso e a data da premiação foi publicada nota no Vanguarda sugerindo que, de fato, o melhor samba fora o de Heitor dos Prazeres. Pronto, Mangueira e Estácio ficaram em pé de guerra. Espalhou-se o boato de que as duas tinham prometido quebrar o troféu antes de ser passado às mãos dos vencedores.
          "O pessoal do Estácio não aceitou aquilo. Foram os nossos incentivadores e, além do mais, apesar de ser metido em tudo que era escola de samba, o Heitor era cria de lá. Foi um aborrecimento muito grande para eles e para a Mangueira também".
          Choveu muito no domingo de carnaval. Mesmo assim, Zé Espinguela foi ao local combinado para a premiação, a escadaria da Escola Benjamin Constant, na Praça 11. E, para surpresa geral, em vez de um troféu eram três. Um para cada concorrente. O destinado à turma de Oswaldo Cruz trazia fita azul e branca; o da Mangueira tinha fita verde e rosa; o da Estácio, vermelha e branca. Os sambistas comemoraram a valer.
          Já na época, as escolas de samba tinham cores de sua preferência. O Conjunto Oswaldo Cruz adotava o azul e branco por causa das vestes de Nossa Senhora da Conceição, sua padroeira; o verde e rosa da Mangueira foi homenagem prestada por Cartola ao Rancho Arrepiados, das Laranjeiras; o Estácio tinha no vermelho e branco a identificação com o América Futebol Clube, cuja sede fica perto, na Rua Campos Sales. Mas foi no carnaval de 1929, nas taças ofertadas por Espinguela, que as três escolas fixaram suas cores, determinando que as outras deviam escolher as suas.
          No carnaval de 1930, as grandes atrações da cidade eram as grandes sociedades e os clubes de rancho, que desfilavam na Avenida Rio Branco em frente à sede do Jornal do Brasil, que patrocinava o desfile e era responsável pela organização do corpo de jurados. Os quesitos em julgamento eram conjunto, harmonia e enredo. Quem venceu o concurso foi o Flor de Abacate, ficando em segundo o Caprichosos da Estopa. Já o desempenho das sociedades era analisado nos quesitos indumentária, concepção, escultura, cenografia, crítica, maquinaria e iluminação. Sagraram-se vencedores os Fenianos, seguidos pelo Tenentes do Diabo e os Democráticos.